América Latina vive crise de representatividade, diz ex-promotor de Haia

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“Há mais demanda da sociedade para que os políticos não se metam mais com corrupção. O problema agora é político. Como substituir os corruptos? A América Latina vive uma crise de representatividade”, diz à Folha o advogado argentino Luis Moreno Ocampo, 63.

Promotor da corte penal do Tribunal de Haia, entre 2003 e 2012, e do Julgamento das Juntas Militares, na Argentina, em 1985, Moreno Ocampo é hoje membro do Carter Center for Human Rights da Universidade de Harvard.

Leia, abaixo, trechos da entrevista que concedeu à Folha, em Buenos Aires, onde esteve para participar da Feira Internacional do Livro.

Folha – A corrupção está abalando a política no Brasil, na Argentina e na América Latina em geral. O que mudou, a corrupção, a sociedade, a política ou a Justiça?

Luis Moreno Ocampo – Em primeiro lugar, mudou a América Latina, que hoje é uma região com democracia, o que é uma boa notícia. Por exemplo, por que nos importamos quando há atentados à liberdade de imprensa em países como a Venezuela ou o Equador? Porque numa democracia isso não é tolerável. Portanto, o fato de isso ser uma questão já aponta para algo positivo.

Pode ser banal falar disso agora, mas é um imenso progresso em relação a 40 anos atrás, quando tínhamos ditaduras militares, desaparecimentos e assassinatos.

Quando se está diante de situações graves, de genocídio, de guerra, a liberdade de imprensa vira tema menor. Hoje, na América Latina, é um tema maior. Então, houve um progresso.

Agora, por outro lado, numa democracia que funciona, e que, nos dias de hoje, tem muito mais informação por conta dos meios digitais, essa situação evolui para uma sociedade em que se questionam os governantes como nunca antes se fez no passado.

Antes, o abuso de poder na América Latina era a ditadura. Depois, na democracia, o abuso de poder virou a disseminação da corrupção. Hoje, essa corrupção se mantém, mas com o aumento da circulação da informação, ficou mais exposta.

É por isso que a corrupção está mais visível e tendo efeitos diferentes em cada país.

O sr. vê uma crise de representatividade, um cansaço das sociedades com a velha política? Isso explicaria a ascensão de nomes como Mauricio Macri, aqui na Argentina, ou de Donald Trump, nos EUA, que se apresentam como “gestores” e “não-políticos”?

Sim, e isso está acontecendo no mundo todo. É um fenômeno causado, justamente, por esse aumento do acesso à informação. Os Panamá Papers ou o caso Fifa são mostras disso.

Em cada país a sociedade está respondendo de um jeito, mas, do ponto de vista global, o fenômeno é o mesmo, há uma repulsa ao velho modo de fazer política.

O problema é que, para essa demanda social, cada vez mais crescente, parece ainda não haver uma oferta convincente e eficiente.

De seu ponto de vista, por ter participado da transição da ditadura(1976-1983) à democracia aqui na Argentina, como vê um desenlace para esse dilema?

Há uma coisa que aprendi, quando participei do Julgamento das Juntas Militares [em 1985, quando foram julgados os militares envolvidos na repressão].

É verdade que eu era jovem e idealista, mas eu realmente acreditava que, se pudéssemos fazer justiça com relação àqueles crimes da repressão, em 30 anos a Argentina ia virar um país como a Suécia.

Mas isso não aconteceu, claro. Nem o Brasil nem a Argentina vão virar a Suécia porque nós não somos suecos. Porque é muito difícil realmente mudar os países.

O Mãos Limpas, na Italia, é um exemplo. Limpou-se o sistema político, mas logo surgiu espaço para surgir outro líder, de fora, que voltasse a pagar os subornos e cometer os abusos de antes, que foi Silvio Berlusconi.

E por que não surge essa alternativa aos políticos corruptos?

Surgem alternativas, mas eles se corrompem. Carlos Menem (1989-1999), em seu primeiro discurso ao assumir como presidente da Argentina, disse que consideraria a corrupção como uma traição à pátria.

E depois vieram os casos dele (escândalo da venda de armas, contas no exterior), ele foi denunciado e terminou preso por corrupção. Hoje está aí, ainda na vida política.

Por enquanto só vejo aumentar a demanda da sociedade para que os políticos não se metam mais com a corrupção, mas ainda não vejo surgir uma forma de responder a essa demanda.

Como vê o caso brasileiro, nesse contexto?

É similar ao italiano. Assim como na Operação Mãos Limpas, há uma equipe de promotores e juízes que se organizou, fez uma boa investigação do ponto de vista técnico, reuniu muita informação e revelou um modo de corrupção que é comum em várias partes da América Latina.

Mostrou uma forma de governar da classe política já instalada há tempos e que tem a ideia de usar o governo em benefício do próprio partido e em benefício pessoal.

Também, que a justificativa dos partidos é sempre a mesma, a de que, sem colocar as mãos na corrupção já instalada, não se consegue fazer política.

Há corrupção em outros países democráticos pelo mundo, mas não é tão sistêmica como aqui na América Latina.

A Mãos Limpas expôs essa situação na Itália e fez desaparecer a classe política envolvida, mas não soube substitui-la por algo melhor. No Brasil o problema parece estar sendo o mesmo. Quem vai substituir os corruptos, quando uma operação como a Lava Jato mostra que toda a classe política e empresarial está metida no jogo?

De promotor do julgamento dos militares, o sr. virou promotor da jovem democracia argentina. Como foi essa transição?

O Julgamento das Juntas Militares teve forte significado político. Sua intenção não era apenas julgar os abusos de direitos humanos. A ideia era cortar a cabeça daquele grupo político, os militares, e evitar que voltassem ao poder por meio de outro golpe de Estado.

Precisávamos impedir que retornassem, pois a Argentina já havia vivido várias ditaduras naquele mesmo século.

Já quando atuei como promotor depois disso, durante a democracia, pensava que poderíamos ser tão eficientes com os abusos de poder na democracia como fomos com o abuso de poder na ditadura.

Mas tudo se mostrou diferente quando os dirigentes políticos que antes nos aplaudiram por julgar os repressores, vinham então me pedir: “Luis, veja, esse banqueiro é meu amigo”, ou “aquele empreiteiro é dos nossos”. O argumento “são amigos” passou a imperar e a tornar muito difícil fazer meu trabalho.

Na Argentina, os anos Menem foram mais corruptos que os Kirchner?

Isso foi mudando, mas não na essência. Por exemplo, uma vez, o ministro Domingo Cavallo [das gestões Menem e De la Rúa] disse, num programa de televisão em que eu estava, que um deputado tinha lhe pedido dinheiro para aprovar uma lei.

Eu o abordei em seguida e disse: “Ministro, o que o senhor acaba de contar é um crime. Como promotor, eu preciso denunciar amanhã”. Ele me olhou com cara de espanto. “Como assim, um crime? Todos fazem o mesmo.”

A violência política acabou na América Latina e não creio que volte, mas o abuso de poder por meio da corrupção é sistêmico. É o negócio das pessoas que têm poder.

A corrupção no Brasil hoje se parece com a da Argentina? O que as diferencia?

Em essência são parecidas, porque se referem à administração e desvios dos fundos das obras públicas para conseguir recursos partidários e de campanha eleitoral. A diferença está na atuação do Judiciário, na Argentina temos um Judiciário menos independente.

Por quê?

Isso não vem de agora. Macri herdou um pântano. Na área econômica e administrativa, tem recursos e boa equipe para ir adiante. Mas no campo institucional e jurídico, não possui quadros, nem experiência, nem sequer um plano. Portanto creio que não terá condições nem vontade de secar esse pântano.

Mas a Justiça está julgando os casos de corrupção da gestão anterior, ou pelo menos começou a faze-lo.

Sim. Mas não irão muito longe. Podem condenar Lázaro Báez (empresário beneficiado durante o kirchnerismo), mas não chegarão a ministros, a gente de mais alto escalão. E depois, não há avanço quanto ao que se fez no passado. Menem foi investigado depois de sua gestão, De la Rúa também. Não deu em nada.

Nenhum presidente foi, até agora, contra a corrupção como algo sistêmico.

Todo governante novo tenta ter influência sobre os juízes. Menem fez uma grande reforma, colocando juízes amigos. Néstor Kirchner desfez essa reforma, favorecendo outros. Depois, o kirchnerismo passou a atuar mais com a integração do sistema de inteligência (a Side) com o Judiciário. E essa é uma trama muito difícil de desarmar.

A tendência, então, é que Macri siga o padrão de relação de governo e Justiça de governos anteriores?

Digo apenas que herdou um pântano e não mostrou ainda vontade de seca-lo. Mas o mundo de hoje é um mundo diferente, por causa da informação, como dizíamos no começo. Antes você elegia um representante e sabia pouco sobre o que ele fazia no seu cargo. Hoje pode mandar um tuíte para ele enquanto ele faz um discurso. Essa revolução tecnológica vai abalar a democracia representativa, já o está fazendo, na Argentina, no Brasil e no mundo todo.

Quando se inventou a imprensa, a revolução foi gigantesca, nos costumes, na religião, na política. Só que demorou séculos para acontecer. Com o surgimento da internet, vivemos uma revolução parecida, mas numa velocidade muito mais acelerada. E vai afetar a política e a democracia representativa.

Como vê a situação do Brasil hoje?

Muito complicada. O fato de ter-se armado um sistema judicial independente foi um avanço, mas agora o problema é político. O Brasil terá de regenerar sua política.

O que está acontecendo com Dilma Rousseff é uma crucificação que parece injusta. Entendo que não há nada, por ora, que a envolva na corrupção, mas sua falha foi não ter limpado seu gabinete e colocado ali gente que não tinha envolvimento com atos ilícitos.

O Brasil terá um mau futuro se apenas o PT for condenado e pessoas como as que comandaram o processo de “impeachment” e que estão envolvidas com a corrupção não sejam processadas.

Vivendo nos EUA, como vê o fenômeno Donald Trump ?

O que está dando apoio a Trump são as pessoas mais velhas, que estão assustadas com o novo, com o que vem de fora. Há um movimento de defesa dos que querem proteger suas famílias e aqueles que são “iguais a nós”.

A ideia de inclusão, de que o diferente tem de ser respeitado, é uma ideia da revolução democrática e constitucional. Ou seja, uma construção cultural. O impulso biológico, o que é mais fácil, em momentos de perigo e ameaça, é agarrar-se ao tribalismo e ao nacionalismo. É o que está acontecendo no mundo de hoje. Isso explica Trump e a subida da direita na Europa, onde as pessoas estão assustadas com os imigrantes, com gente que vem do mundo árabe e parece assustadora.

O sr. está acompanhando, também, o processo de paz na Colômbia. Como vê esse momento das negociações?

Estive em março durante uma rodada de negociações, em Havana, para esclarecer um ponto sobre direito internacional para os negociadores das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Me encontrei, também, com representantes do governo.

Notei que todos estão cansados. É o último quilômetro de uma maratona e seu momento mais difícil, o de fazer as concessões finais.

Se o acordo for assinado, os níveis de aprovação internacional à Colômbia vão disparar. Se não, será um fracasso muito frustrante.

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Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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