Só é possível combater a desigualdade educacional combatendo a desigualdade social – Sérgio Haddad

Com o abrandamento da pandemia e a aproximação das eleições, o tema da educação escolar voltou a ganhar destaque. Em relação ao primeiro tema, as análises têm se concentrado no impacto da pandemia sobre a aquisição de conteúdos por parte das crianças e jovens e o aumento das desigualdades escolares.

Quanto ao segundo, multiplicam-se as tradicionais promessas de um futuro melhor, tendo a educação papel central na superação das desigualdades e na conquista do bem viver para todas as pessoas. Infelizmente, é apenas em raríssimos casos que as análises sobre o papel da educação estabelecem correlações com a estrutura da sociedade brasileira e sua história de desigualdades e discriminações.

Paulo Freire, na apresentação do livro “Cuidado Escola”, de 1980, nos alertava sobre a relação entre educação e sociedade: “Enquanto espaço social em que a educação formal, que não é toda a educação, se dá, a escola na verdade não é, a escola está sendo historicamente. A compreensão do seu estar sendo, porém, não pode ser lograda fora da compreensão de algo mais abrangente que ela —a sociedade mesma na qual se acha. A educação formal que é vivida na escola é um subsistema de um sistema maior.”

Ora, a sociedade em que vivemos —a sociedade capitalista— acaba por definir e naturalizar o subsistema escolar. Se somos uma sociedade desigual, onde uns poucos têm muito e outros muitos têm pouco, isto vale também para a educação: uns poucos têm uma escola de muita qualidade, outros muitos acessam uma escola de pouca qualidade.

A sociologia da educação se debruçou para estudar como a escola capitalista é um subsistema do Estado capitalista: Althusser, Establet-Baudelol, Bourdieu-Passeron, Ivan IIich, entre outros, procuraram demonstrar como os interesses das classes dominantes se impõem em sociedades como a nossa, garantindo a reprodução das desigualdades por meio da escola e dos sistemas escolares.

A verdade é que vários analistas educacionais não têm interesse em discutir e denunciar o fato de que grande parcela da sociedade não acessa a educação formal porque vive em um país estruturalmente desigual. Fazem vista grossa, transmitem um otimismo sobre o papel da escola que acaba culpando a vítima por não conseguir completar sua escolaridade.

Ora, se a escola é redentora da condição de pobreza dos mais pobres, por que então o aumento da escolaridade média da população das últimas décadas não impactou a nossa elevada desigualdade social? É porque a retórica prevalece sobre os fatos: nossas escolas públicas e privadas são instrumentos de manutenção das desigualdades.

O acesso à educação básica veio se ampliando de forma gradual e contínua, é verdade. Também cresceu o número de anos de estudo da população, assim como ampliou-se o direito à educação estabelecido em lei. Contribuíram para isso o esforço dos sistemas municipais e estaduais de ensino e a tendência demográfica de redução da população em idade escolar. Mas ainda estamos longe de satisfazer a demanda por creches, como também pelo ensino infantil de 4 a 5 anos e pelo ensino médio. Além do mais, entre aqueles que se matriculam, um número significativo de crianças e jovens não conclui seus estudos ou conclui com atraso, com expressivos marcadores de desigualdades entre esses estudantes.

Esta é a nossa escola pública: baixo nível de aprendizado, grandes desigualdades e trajetória escolar irregular, alijando do direito à educação majoritariamente as populações das regiões menos desenvolvidas, pretas e pardas, dos grupos de renda mais baixa e populações rurais. Por outro lado, na outra ponta da sociedade, cresce a oferta de escolas para as elites, cada vez mais caras e sofisticadas, de tempo integral, multilíngues cobrando mensalidades caríssimas.

Com a pandemia, o quadro educacional se agravou: a responsabilidade pela educação das crianças e jovens moveu-se da esfera pública para a vida privada, para o espaço das famílias. Caiu no colo de uma das sociedades mais desiguais do mundo. Apesar dos esforços pedagógicos e didáticos dos profissionais da educação e dos gestores, apenas uma minoria pôde contar com boas condições materiais, humanas e de inclusão digital. A pandemia também agravou a desigualdade social, com aumento da pobreza e da miséria, enquanto, por outro lado, uma minoria de bilionários aumentava suas fortunas.

Ora, não é a escola que está em crise! É a nossa sociedade!

Mesmo considerando os importantes e reais aportes trazidos por aqueles sociólogos da educação, outros estudos nos alertam que não podemos aceitar o determinismo apontado por eles como se não houvesse saída: há, sim, nas escolas e nos sistemas de ensino, forças positivas e autônomas para enfrentar as desigualdades produzidas pela sociedade.

Para que isso ocorra, é necessário ofertar mais aos que têm menos, reconhecendo que políticas igualitárias em sociedades desiguais como a nossa apenas aprofundam as desigualdades. Daí a importância de políticas afirmativas, como o Prouni, as políticas de cotas, professores com maior experiência atendendo os mais vulneráveis, atenção especial às diversidades regionais e culturais, políticas de compensação das desigualdades de estados e municípios produzidas pelo regime federativo e da ausência de um sistema público educacional.

Em segundo lugar, é preciso considerar que a educação é um direito humano cuja conquista é indissociável de outros direitos. Não se constrói democracia educacional sem democracia social. É uma relação de dupla mão: uma sociedade desigual produz uma educação desigual, assim como uma educação desigual alimenta a desigualdade social. Daí a importância da garantia de outras políticas sociais —como as de moradia, saneamento, renda e saúde— juntamente com as educacionais, para permitir que as crianças e jovens das famílias mais pobres consigam frequentar as escolas.

Por fim, temos de reconhecer que não há apenas soluções técnicas para a crise educacional: há também uma dimensão política. Pautar e discutir nas escolas o modelo de sociedade vigente, as desigualdades e discriminações existentes, é fator fundamental para que as novas gerações reflitam sobre elas e se engajem em sua superação. Conforme Paulo Freire nos ensinou: “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.”

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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