Sem aprender com erros, PT pode deixar esquerda brasileira

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A derrota no primeiro turno das eleições municipais pôs em números o tamanho da crise do Partido dos Trabalhadores. Protagonista da política nacional nas últimas duas décadas, o partido vinha de uma sequência de resultados arrebatadores nas urnas, com quatro mandatos presidenciais conquistados. Nos próximos meses, a legenda completará um ano no inferno. O calvário começou com a abertura do processo de afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff ao final de 2015.

Seguiu com as denúncias contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e diversas lideranças do partido e a consumação do impeachment. E será completado em 31 de dezembro com a entrega das chaves de, no mínimo, 372 prefeituras Brasil afora (sete estão em disputa no segundo turno). Enfraquecidos como nunca, petistas batem cabeça sobre os rumos da sigla. Está em jogo a hegemonia do grupo liderado por Lula, no comando desde 1995, e a própria sobrevivência do partido.

No curto prazo, a “renovação” ou a “refundação em novas bases” são expressões das mais diversas alas petistas. Mas não se sabe como fazer isso. “A discussão interna do PT empobreceu e passou-se a discutir apenas cargos de poder”, afirma o ex-ministro da Justiça  José Eduardo Cardozo. “Temos de fazer uma reflexão profunda sobre os erros e tocar as mudanças inadiáveis.” A avalanche de acontecimentos faz do ano de 2016 o fim de uma era e deixa no ar uma questão: o que será do PT?

A pergunta está longe de ser respondida, mas os números não deixam dúvida de que o PT se apequenou. Restaram 256 das 635 prefeituras conquistadas em 2012, seu melhor resultado municipal, despencando da terceira colocação entre os partidos em número de prefeituras para a décima posição. Entre as capitais, o PT deve comandar apenas Rio Branco, caso perca em Recife no segundo turno.

Um primeiro dado para entender essa derrocada está na quantidade de municípios em que o partido lançou candidatos a prefeito: de 96% das cidades brasileiras em 2012, caiu para 72% neste ano. Ou seja, a sigla perdeu ramificações pelo país e foi abandonada em muitas cidades. Essa tendência já estava em curso. Em abril, 20% dos prefeitos eleitos pelo PT em 2012 já haviam se desfiliado do partido. Na Câmara Federal, dos 70 deputados eleitos, sobraram 58, o mesmo patamar de 1998.

A situação tende a piorar. Até o final do ano está previsto o fim da delação premiada dos executivos da empreiteira Odebrecht, fato que pode explodir de vez o partido e suas principais lideranças — além das de outros partidos. Um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que 18 ex-ministros do PT estão sob investigação na Operação Lava-Jato. Além disso, Lula acaba de se tornar réu na terceira ação penal na Justiça.

A perda do governo federal e de tantas prefeituras deixa um vazio de indicações para cargos, o que no abecedário político significa menos capacidade de atrair aliados e ser relevante. Somente no governo federal, são 24 000 cargos comissionados sobre os quais o partido não tem mais controle. Na região metropolitana de São Paulo, berço do partido, o PT elegeu oito prefeitos em 2012, incluindo a capital, que dispunham de 12 000 cargos comissionados.

Em São Paulo, o partido podia distribuir 6 000 comissionados, entre petistas e aliados. Não à toa, neste ano, 23% dos candidatos petistas encabeçavam chapas ante 35% em 2012 — o partido passou a ser mais coadjuvante. O baque eleitoral pode ser também o prenúncio do que aguarda a sigla em 2018. Com menos prefeituras, diminui a chance de eleger deputados e senadores, uma vez que se perdem as bases de cabos eleitorais que auxiliam nas candidaturas.

Pelo mundo, muitos partidos já passaram pela situação do PT. Na Espanha, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) representou as mesmas bandeiras e consolidou a democracia no país. Desde que perdeu as eleições em 2012, o PSOE briga por espaço com o Podemos, surgido na esteira dos movimentos contra a austeridade fiscal na Espanha em 2011. Na Itália, a operação Mãos Limpas revelou em 1992 um grande esquema de corrupção, e a Democracia Cristã e o Partido Socialista Italiano — ambos implicados — praticamente sumiram da cena política.

Por aqui, Lula e outras lideranças petistas correm o risco de ser presos — ou já foram. À beira de um racha, os exemplos mais próximos não servem de alento. Em livro lançado neste ano, o cientista político Noam Lupu, da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, estudou a razão de 25% dos partidos na América Latina terem entrado em colapso de 1978 a 2007. Ao analisar a trajetória de 11 partidos no período, Lupu descobriu que, quando as siglas convergiam com as opiniões dos rivais e mostravam inconsistência com seus projetos, a marca partidária se diluía.

Essa diluição, acrescida de um mau desempenho no governo, levou as legendas ao declínio. É o caso da Ação Democrática e do Partido Social-Cristão, da Venezuela, que tiveram, em média, uma soma de 78% dos votos de 1958 a 1993 e caíram para 3% em 1998. O mesmo ocorreu com o Apra, no Peru, e com a União Cívica Radical na Argentina. Para o PT, o presságio é ruim: em sua pesquisa, Lupu viu que, após um partido importante quebrar, em geral, o sistema partidário se fragmenta e novas siglas surgem como veículos para políticos famosos. As conexões que mantinham o partido unido se enfraquecem e a legenda perde coesão.

Burocratas do partido
Fundado em 1980, em São Paulo, o PT foi uma grande novidade no cenário político. Junção de militantes católicos de esquerda e intelectuais com o movimento sindical, simbolizava o que havia de mais vibrante na luta por direitos sociais e ética. Depois, o partido se consolidou como uma aglomeração de tendências que vão da extrema esquerda ao centro. Inicialmente, analistas elogiaram a intensidade da disputa interna. Em geral, partidos são dominados por elites que ocupam cargos no Congresso.

O PT, em seus primeiros anos, começou de baixo para cima. Em 1995, o ex-ministro José Dirceu assumiu a presidência do partido e sua corrente Construindo um Novo Brasil passou a centralizar as decisões. Vieram dessa ala mudanças significativas para o crescimento do partido, como a expansão pelo país. Em 1993, o PT estava representado com diretórios ou comissões provisórias em 44% dos municípios brasileiros. Dez anos depois, em 96%. A campanha de 2002 foi um divisor de águas.

Desde a escolha do publicitário Duda Mendonça, então ligado a Paulo Maluf, passando pela articulação com o Partido Liberal e culminando na divulgação da “Carta aos Brasileiros”, na busca de mostrar uma face moderada para acalmar os investidores, ficou evidente um deslocamento para o centro do espectro político e para a obtenção de resultados eleitorais. Uma modificação importante se deu em 2000, quando o partido passou a aceitar doações de empresas privadas. Até então  o PT se financiara com recursos públicos e contribuições obrigatórias dos filiados.

Dirceu também mudou a forma de eleição interna em 2001, tornando-a direta, para garantir estabilidade a seu grupo no poder. Com o tempo, a elite do partido se distanciou da base. Uma pesquisa da Universidade Federal do Paraná mostrou que o PT era o partido que mais emplacava candidaturas de trabalhadores de pouco prestígio social e baixa remuneração, como metalúrgicos e bancários, para a Câmara dos Deputados.

Em 1998, 21% dos candidatos petistas tinham esse perfil em comparação com 9,5% de outros partidos. Em 2014, o PT foi ultrapassado pela primeira vez ao lançar 12% de candidatos-trabalhadores, enquanto outras siglas lançaram 14%. “O PT se profissionalizou no poder e substituiu seus representantes. Os trabalhadores viraram políticos e burocratas do partido”, diz o cientista político Bruno Bollognesi, um dos autores do estudo.

No dia 13 de outubro, o PT do Rio Grande do Sul lançou um manifesto exigindo um congresso para eleger a nova diretoria. Na prática, os gaúchos tentam antecipar a mudança dos dirigentes e pressionam por mais espaço. “A direção precisa convocar imediatamente um congresso com plenos poderes e deixar que o conjunto do partido decida qual será nossa estratégia”, afirma Valter Pomar, líder da tendência Articulação de Esquerda e um dos membros do diretório nacional do PT. Boa parte da discussão gira em torno do processo de votação direta dos filiados.

O atual grupo do poder diz que essa é a maneira mais democrática de escolher as lideranças. Oposicionistas, porém, alegam que o processo repete vícios pouco republicanos das campanhas tradicionais, e afirmam ser uma forma de a tendência de Lula e Dirceu se manter no poder utilizando a máquina do partido. No dia 17 de outubro, o grupo Muda PT, que reúne cinco tendências de oposição à atual diretoria, realizou a primeira de diversas reuniões que pretende fazer pelo país, expondo de vez o racha interno.

Em resposta, a tendência Construindo um Novo Brasil disse que o processo de preparação do congresso e de eleição da próxima direção “dirá muito sobre como deverá ser o PT, pois forma e conteúdo não se separam”. Oficialmente, a eleição interna marcada para o final de 2017 foi adiantada para maio. “Se tivermos dificuldade de aprofundar o debate, vai ficar mais difícil renascer”, diz o senador Humberto Costa, líder do PT no Senado. “Uma parcela da população é identificada com as ideias do PT. Mas temos de convencer de que mudamos.”

O futuro é ainda mais incerto. Há quem defenda uma frente ampla de esquerda. “Temos de ter uma prioridade para a eleição no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas”, diz Paulo Teixeira, deputado federal e um dos vice-presidentes do PT. A pressa para discutir os novos rumos é justificada. Quanto mais incerteza, maior a chance de políticos abandonarem o partido. “Se o PT não mudar e não der espaço ao debate, vai haver uma debandada”, diz Ary Vanazzi, presidente do PT-RS.

Um problema claro está na situação de Lula, encrencado na Justiça e ainda a única liderança incontestável do partido. Sondado para assumir a presidência, ele vem rechaçando a ideia. “O declínio de Lula implica o declínio do PT”, diz o cientista político Marcus Melo, da Universidade Federal de Pernambuco. “Se não for candidato, Lula vai apoiar Ciro Gomes? Isso liquidaria a fatura do PT.”

Hoje, nomes que circundam a sucessão de Rui Falcão na presidência do PT são conhecidos dos eleitores, como o ex-governador Jaques Wagner, o senador Lindbergh Farias e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Para alguns petistas, Haddad poderia ser uma renovação. “O problema é que muitos dizem que o Haddad é a ‘Dilma educada’ ”, afirma um membro da executiva do partido, em alusão a uma suposta inabilidade política e tendência à centralização do prefeito.

Os principais dirigentes, contudo, ainda patinam numa revisão mais profunda dos erros. O balanço do primeiro turno feito por Rui Falcão foi considerado tímido. “Para o PT, os outros sempre são culpados. O partido não está disposto a enfrentar seus erros”, diz o cientista político José Álvaro Moisés, um dos fundadores do PT, que o deixou em 1989. O PT conheceu a glória. Agora, por suas omissões e erros crassos na ética e na condução econômica, conhece a bancarrota. A esquerda brasileira não dá sinais de que deixará de existir. A dúvida é como — e se — o PT fará parte dela.

Fonte: Exame

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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