‘Os invisíveis’: como pensa a massa de eleitores que rechaça a polarização e pode decidir as eleições em 2026
A um ano da eleição presidencial, mais da metade dos brasileiros tem posicionamentos que não se enquadram na polarização entre lulismo e bolsonarismo. Conservadores em costumes, mas menos radicais, eles podem decidir os rumos da disputa pelo Planalto em 2026. A percepção é resultado de uma pesquisa da ONG More in Common, coordenada pelo pesquisador e professor da Universidade de São Paulo (USP) Pablo Ortellado e feita em parceria com a Quaest.
Descritos como invisíveis, pois ficam à margem do debate político, eles são 54% da população. Por serem mais voláteis se comparados a segmentos identificados com a esquerda ou a direita, desafiam candidatos que disputarão seus votos no ano que vem.
Esse grupo instalado mais ao centro do espectro político foi dividido no levantamento entre desengajados (27%) e cautelosos (27%) — nos extremos estão progressistas militantes (5%) e a esquerda tradicional (14%), além de conservadores tradicionais (21%) e patriotas indignados (6%). Eles demonstram menos interesse em se manifestar politicamente e de participar de debates públicos.
— Quando dividimos (os entrevistados) em seis grupos, vimos que as posições mais extremas se concentram em segmentos pequenos, enquanto a maioria da população está no meio, cansada da polarização — explica Ortellado. — Essa pessoas não são despolitizadas. Elas têm opiniões consistentes, mas não se manifestam em protestos ou nas redes, e acabam invisibilizadas no debate público.
Entre os desengajados, 30% relatam ter votado nulo, branco ou não ter comparecido às urnas nas eleições de 2022. No mesmo grupo, 65% relatam não ter identificação com nenhum partido, apesar de 21,5% simpatizarem com o PT, e apenas 15% consideram manifestações políticas importantes.
Entre os cautelosos, apenas 11% concluíram o ensino superior, mais de 55% têm renda menor que R$ 5 mil e 12% já não tiveram o que comer. O grupo é o mais nordestino (31%), rural (17%) e católico (48%). Em comparação aos desengajados, apresentam um nível de engajamento maior (26% veem como relevante a participação em protestos), mas ainda inferior aos segmentos considerados mais polarizados, que ocupam os extremos e cujos índices variam de 49% a 71%. A pesquisa ouviu 10 mil pessoas de todas as regiões do país, entre 22 de janeiro a 12 de fevereiro deste ano, e tem margem de erro de um ponto percentual.
A guardiã de piscina Joyce Soares, de 22 anos, define-se como “mais conservadora, a favor da família e da proteção das crianças”. É contra imposições ideológicas nas escolas, mas defende a importância de manifestações políticas na ruas. Desmotivada, ela conta ter se afastado das redes sociais por causa dos extremismos gerados pelo cenário atual e avalia que a polarização tem feito as pessoas “perderem o amor ao próximo”:
— Eu sei a importância de o povo se unir, falar sobre política e pautas sociais. Mas, infelizmente, o Brasil está dividido, parece que não pode ter meio-termo, e eu não tenho partido ou político de estimação.
A pesquisa indica que os desengajados tendem a se preocupar mais com temas como segurança econômica, serviços públicos de saúde e combate à pobreza. Els correspondem ao segmento menos escolarizado (apenas 6% têm curso superior), com o maior percentual de pretos (13%) e o que mais vivenciou insegurança alimentar (12%).
Joyce reforça esses traços ao apoiar medidas sociais, como a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, aprovada semana passada pela Câmara. No entanto, a jovem critica o que chama de programas “assistencialistas” por estimularem, segundo ela, “comodismo” e fraudes. Cristã, ela lamenta a agressividade dos debates políticos e, apesar das discordâncias em relação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirma orar pelo petista, pois acredita que o desempenho do governo afeta diretamente a vida da classe trabalhadora.
Na mesma linha, o estudante Silas Guimarães, de 23 anos, enxerga a polarização com distanciamento e tem ideais próprias que flutuam entre os posicionamentos extremos, definindo-se como alguém “mais do centrão”. Dos partidos mais à esquerda, ele diz valorizar a forma como investem na educação pública; na outra ponta, enxerga como positivo os discursos voltados para segurança e redução da criminalidade.
— Eu acho a direita de hoje muito agressiva. É mais autoritária para tentar fazer uma pessoa se converter aos partidos. Existe uma certa imposição — reflete sobre o que considera negativo. — E na esquerda, penso que nunca há planos bons para segurança.
Dentre as posições mais próximas ao conservadorismo, Silas considera que os direitos humanos podem atrapalhar o combate ao crime organizado por “sempre criticar a polícia e ir contra as autoridades”. Ele acredita ainda que os professores de esquerda, em parte, têm mais tendência à “doutrinação” nas escolas e universidades públicas.
A percepção conservadora se traduz em outros temas abordados na pesquisa, como o uso de banheiros femininos por travestis (rejeitada por 70% dos desengajados e 89% dos cautelosos) e cotas raciais (vistas como forma de racismo por 54% e 67% dos segmentos, respectivamente). A maior divisão, no entanto, ocorre justamente na percepção sobre os direitos humanos mencionados por Silas: metade dos desengajados afirma que a pauta atrapalha o combate ao crime. A maioria absoluta dos conservadores tradicionais (86%) e patriotas indignados (93%) defende o mesmo. Fenômeno similar acontece com os cautelosos ao serem questionados se o feminismo ameaça a família brasileira: 46% acatam a afirmação, enquanto, entre aqueles identificados com a direita, o índice de concordância supera 80%.
O balanço entre direita e esquerda fica evidente em outros pontos do pensamento do estudante. Apesar da crítica aos direitos humanos, ele avalia que nos governos de esquerda há mais concursos públicos, o que considera positivo. Sobre o direito dos cidadãos à posse de arma, pauta cara aos políticos de direita, Silas discorda da reivindicação, afirmando que “pela mentalidade do brasileiro, aconteceria muita besteira”.
O levantamento destaca que mesmo correspondendo aos grupos que podem se beneficiar de programas sociais, comuns aos governos de esquerda, tanto desengajados quanto cautelosos tendem a se identificar mais com o perfil conservador, aproximando-se ideologicamente da direita em pautas de costume.
— A sociedade brasileira, de modo geral, combina duas características: é moralmente conservadora e, ao mesmo tempo, defensora de programas e políticas sociais. A proteção social é o grande apelo da esquerda, enquanto a moralidade conservadora é uma bandeira da direita — discorre Ortellado.
Cientista política e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Lilian Sendretti explica que a população brasileira vem experimentando, desde 2018, uma “politização da vida cotidiana” que “cansa as pessoas” e as levou a ter receio de conversar sobre o assunto pelo temor de conflitos. Apesar disso, a especialista destaca a importância de observar a “assimetria” entre os polos contrastantes, já que a identidade política bolsonarista aparenta ser “mais saliente”.
— Na próxima eleição, a expectativa é que as discussões sobre políticas sociais e econômicas voltem a ter mais espaço do que na anterior, porque há esse cansaço — analisa. — Essa tendência de moralizar e politizar os costumes pode vir com uma força menor, o que não significa que vai deixar de existir, porque é um atrativo para candidatos mais conservadores.
Fonte: O Globo