Messi invocou memória de Maradona para liderar vitória da Argentina – Idelber Avelar


O contraste entre Argentina e Brasil na Copa de 2022 não poderia ter sido mais profundo. A valorização argentina dos profissionais da psicologia tornou vergonhosa a pretensão de Tite de acumular os cargos de técnico e terapeuta.

As variações do jovem técnico Lionel Scaloni, que pensou sete formações para sete adversários, contrastavam com a incapacidade brasileira de alterar sua formação tática, ao ponto de morrer, com cinco atacantes, de contra-ataque em uma prorrogação que vencia.

Para abandonar as comparações e dedicar-se a conhecer a Scaloneta (apelido pelo qual o time de Lionel Scaloni ficou conhecido), podemos voltar aos 40 minutos do 2º tempo da semifinal entre Argentina e Bélgica, em 1986.

Nada de decisivo aconteceu ali. Ao fim de um 2 a 0 tranquilo, a pedido de Maradona, o técnico Carlos Bilardo mandou a campo Ricardo Bochini, armador do Independiente já em fim de carreira que foi inspiração para o craque do time nos anos 1970.

Obcecado em não se esquecer de onde veio, Maradona realizou o sonho de trocar passes em uma Copa com o ídolo que havia chegado a campeão do mundo interclubes, mas que nunca tivera a sequência que merecia na seleção.

Maradona recebeu Bochini com a mão estendida e a frase “lo estábamos esperando, maestro”, em ato de generosidade só compreensível para sua arquibancada. Inauguravam-se ali honrarias à memória que viriam a ser próprias dos argentinos em Copas.

A obsessão por redimir os ancestrais escravizados e homenagear os que tombaram jamais deixaria de ser o norte de Maradona. Os pobres o entenderam bem, e em favelas de Buenos Aires a Daca (Bangladesh) dedicaram a ele um amor enraivecido e incondicional, sem paralelo na história do futebol.

Lembrando os que honraram a camisa, a Scaloneta se reivindicou herdeira de Maradona em preleções que evocavam as vitórias e em cantos que exibiam as derrotas como feridas. Entre torcedores de outros países que se juntaram à Argentina nas finais, essa pulsão memoriosa produziu estupefação e choques culturais: “Esses malucos incentivam o time 90 ou 120 minutos só lembrando?”.

O esforço de memória nas arquibancadas argentinas, expresso em longos cordéis de alexandrinos labirínticos que reconstroem décadas de futebol, chega a ser física e animicamente exaustivo, e não tem paralelo nos breves bordões de nossas torcidas.

A Scaloneta, em particular, evocava o passado do futebol no país de forma única. Scaloni é discípulo de José Pékerman, responsável pelas formações de Walter Samuel e Pablo Aimar, assistentes em 2022, e pela primeira escalação de Messi na seleção principal.

Pékerman assumiu as categorias de base de uma Argentina banida de competições internacionais em 1994. Entrou, restaurou uma equipe da qual o torcedor podia se orgulhar e empilhou títulos com o sub-20 até 2001.

Na tribuna do estádio em Doha (Qatar), Pékerman observava seu discípulo Scaloni dar um último banho tático (mesmo que resolvido nos pênaltis) depois de escalar sete formações pensadas para cada adversário, todas regidas pelo gênio que ele, Pékerman, lançara na seleção.

O triunfo argentino de 2022 era de todos, mas as ideias de Pékerman foram vindicadas de forma cabal na cancha.

Fazendo uma analogia grosseira, o debate argentino entre menottismo e bilardismo corresponde ao debate brasileiro entre telê-santanismo e zagallismo/parreirismo, com a diferença de que este último não gerou exatamente uma bibliografia.

Como disse uma vez o jornalista David Butter, é verdade que a síntese brasileira realizada depois da chegada da escola centroeuropeia é de excelência. Mas também é visível que a memória de uma conversa foi se perdendo, e a bibliografia argentina (não só em livros, mas em canções, filmes, comerciais, artigos, quadrinhos, palestras, debates) foi se tornando bem mais orgânica e caudalosa que a nossa.

Em contraste ao Brasil das ilhas de excelência (como “Veneno Remédio”, de José Miguel Wisnik), na Argentina a bibliografia conformou um diálogo memorioso, em que se estabeleciam antagonismos, mas também sínteses de tradições anteriores, em uma produção de conhecimento que manteve direta comunicação com a arquibancada.

“Fútbol: Dinámica de lo Impensado” (1967), do jornalista e pensador do futebol Dante Panzeri, clássico argentino que permanece desconhecido há mais de meio século no vizinho “país do futebol”, inspirou gerações, de Menotti a Guardiola.

A dedicação a compreender os esquemas táticos que tentavam domar a imprevisibilidade do futebol, sem deixar de amar esse caráter contingente do esporte, foi uma das marcas de Panzeri, e contribuiu para que o embate entre o futebol-arte do menottismo e o futebol tático e coletivista do bilardismo, nos anos 1980, se desse em outro patamar.

Já nos anos 1990, Pékerman e Marcelo Bielsa realizaram sínteses de influência internacional, mas só compreensíveis a partir de um debate argentino. Diferentes, eles coincidiam no culto do respeito às regras do jogo e à sua natureza eminentemente coletiva. O bielsismo evoluiu a um futebol que se defende atacando, com pressão e frenética ocupação do espaço-tempo, e gerou equipes lendárias, do Newell’s de 1992-93 ao Leeds de 2018-21.

De Pékerman eram não apenas as campeãs do mundo da Argentina sub-20 dos anos 1990, mas também as talentosas Colômbias de 2018 e 2014, esta última eliminada por um árbitro espanhol que cedeu aos gladiadores de Felipão faltas inexistentes, a anulação de um gol legítimo e permissão para um rodízio de 31 botinadas, fora as não marcadas, sem expulsão ou cartão amarelo.

Essa eliminação doeu mais a Pékerman que a da Argentina comandada por ele e derrotada nos pênaltis pela anfitriã Alemanha em 2006. Em 2014, a honra do jogo havia sido conspurcada em pontapés desferidos por atletas que vestiam a admirada camisa canarinho.

Nesta Copa, contra a França, Scaloni adaptou seu time de forma a estrangular o adversário durante 80 minutos, como fizera contra a Holanda. Quis a contingência, contudo, que a merecida vitória só viesse nos pênaltis, depois de uma oração de Messi que evocava Maradona.

O apelo à memória acontecia agora em uma cena tensa, antes da cobrança decisiva do lateral Montiel. Abraçado com os companheiros depois de atuar como verdadeiro líder e converter o primeiro penal, Messi levanta os olhos e diz “Vamos Diego, desde el cielo”.

Messi ali citava o Diego Maradona de 1986, o que homenageara Bochini, mas a menção era secreta e só compreensível argentinamente. Que a entidade evocava já estivesse “no céu” em 2022 e entrando pela linha lateral em 1986 era uma diferença de pouca monta.

O fundamental era que o Deus evocado em 2022 era o mesmo que se reduzira a humilde oferecedor de homenagem em 1986, em lição mnemônica que chega intacta a Messi quase 40 anos depois.

Tolice é discutir superlativos de grandeza entre Maradona e Pelé, mas diferenças pontuais indiscutíveis são instrutivas. Ao contrário de Pelé, que só atuou rodeado de craques cintilantes, no Santos e na seleção, Maradona teve que exigir de Pumpido, Cucciufo, Ruggeri, Brown, Giusti, Enrique, Batista, Olarticoechea, Burruchaga e Valdano não que sempre jogassem bem, o que, com frequência, não podiam fazer. Dois ou três deles, se tanto, seriam titulares no Guarani de Campinas de 1986.

Daqueles jogadores exigiu-se que compreendessem uma enormidade de papel histórico, porque de Maradona, que xingava Deus e o mundo, não se conhece um muxoxo de reprovação aos companheiros que perdiam gols cedidos por ele. Se repetidamente os entregava e eles os perdiam, Maradona se levantava, criava as jogadas e concluía ele próprio, como fez contra a Bélgica.

A Argentina de 1986 é definida por esse estranho laço de entrega incondicional de dez jogadores a seu Deus, e de uma generosidade infinita desse Deus com eles, como em uma Bíblia que só contivesse o Novo Testamento.

Não é casualidade que Messi tenha rezado a Maradona por Montiel, o jovem lateral reserva que cometera o infantil pênalti que deu à França a chance de empatar o jogo em 3 a 3.

Sem qualquer irritação com o companheiro menos talentoso, Messi convocou Maradona a que orientasse Montiel na cobrança. A batida de Montiel foi fulminante e tirou o goleiro Lloris até da fotografia, em um daqueles penais que estufam a rede.

A Scaloneta foi esse arranjo inédito entre Messi e seus companheiros súditos, que permitiu a estes uma devoção completa e àquele uma generosidade infinita, reminiscente de Maradona em 1986.

Nesta equipe, Messi pôde ser ele mesmo e, ao mesmo tempo, mostrar-se herdeiro de Maradona, de Bochini, de Di Stéfano. Esta foi uma, entre várias operações comoventes, que realizou esta equipe com o passado do futebol de seu país.

Idelber Avelar
Professor de estudos latino-americanos na Universidade Tulane (EUA). Seu livro mais recente é ‘Eles em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século 21’ (Record). Prepara um livro sobre a memória e o futebol

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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