Kucinski escreve inventário da ditadura em 28 textos curtos
“Você Vai Voltar para Mim – E Outros Contos”, do professor Bernardo Kucinski, é uma coleção de 28 textos curtos, cujo conjunto constitui um verdadeiro inventário de situações emblemáticas da ditadura brasileira. Pode-se fazer o exercício de distribuí-las em grupos temáticos.
Por exemplo, um, relativo às relações familiares: visões místicas e visitas aflitas de mães aos filhos presos; pais militantes que se sentem culpados ou são acusados de abandono dos filhos; confrontos entre pais conservadores e filhos rebeldes.
Um segundo grupo reúne situações barra-pesada da resistência armada: sadismo do torturador; sequelas das torturas; tensões e contradições das trocas de presos pelos embaixadores estrangeiros sequestrados; desejo de abandonar a luta perdida; paranoia de infiltrados e falsas acusações a companheiros; incômodo de disfarçar traços físicos na clandestinidade.
Fabio Braga/Folhapress | ||
O jornalista, escritor e professor da USP Bernardo Kucinski |
Como apêndice e contraponto a esse segundo grupo, está a nostalgia pelos tempos de militância. Debate político, risco aventureiro e sexo fácil sustentam certa erótica da vida no exílio, cujo fim pesa contra o presente anódino.
Um terceiro grupo temático diz respeito a questões que se poderiam chamar “de costume”: a estranha conciliação entre cerimônia religiosa fúnebre e materialismo político; a suburbana negra, acusada de subversiva por racismo; o estrangeiro, hippie e cabeludo, suspeito usual.
Em todos esses grupos, os recursos de linguagem são restritos à economia de relatos jornalísticos, com narrador de terceira ou de primeira pessoa, transcrição de depoimentos, circunstâncias esquemáticas, fluxos de consciência unívocos e construção de personagens típicas.
A narração distanciada oscila entre o patetismo cômico, o humor negro e a ironia do “causo”. Mais que contos, podemos dizer que são textos com embocadura de crônica: captura rápida de eventos suficientes para caracterizar uma situação mais ou menos típica e seu vetor afetivo.
O conjunto está longe da invenção radical, da investigação imprevista ou de fôlego interpretativo, mas se estabelece competentemente como uma espécie de repertório de lugares-chaves etnográficos de um período contundente.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp e autor de “Máquina de Gêneros” (Edusp).
Fonte: Folha de São Paulo