Jean Wyllys: “Como não querer escola com diversidade?”

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Envolvido em polêmica durante a votação histórica que votou o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, quando cuspiu em direção ao colega de Câmara, Jair Bolsonaro, o deputado Jean Wyllys desembarcou em Salvador na última sexta-feira para participar, na Ufba, de um debate sobre a situação política do país. Antes, o jornalista e professor baiano reservou um tempo para falar com exclusividade para A TARDE, em um entrevista que aborda desde as mudanças sofridas pelo Plano Estadual de Educação (PEE) na Bahia, com a retirada de termos como “gênero” e “diversidade” sexual do texto, até a composição conservadora da Câmara dos Deputados.

Na Bahia, o Plano Estadual de Educação (PEE) acabou de ser aprovado e termos como “gênero” e “diversidade sexual” foram substituídas por palavras genéricas, como “respeito às diversidades”, por pressão dos setores evangélicos que fazem base para o governo petista aqui no estado. Como o senhor avalia o impacto dessas mudanças?

Lamentável. Constrangedor. Mas também não é uma novidade. Isso aconteceu em outros lugares do Brasil. Isso foi um movimento organizado – e muito bem organizado – pela direita cristã, porque não são só os evangélicos neo pentecostais que são responsáveis por isso. A direita católica também faz parte disso. Foi um movimento muito bem orquestrado, usando seus títeres nos parlamentos, nas câmaras de vereadores, nas assembleias legislativas e na Câmara dos Deputados, onde eles encontraram mais resistência. Eu acho vergonhoso que esse processo tenha sido conduzida por uma figura abjeta, grotesca, como o pastor [e deputado estadual pelo PDT] Isidório. Eu não entendo como esse homem é eleito. Ele é um analfabeto funcional e um analfabeto político. Não que analfabetos funcionais e analfabetos políticos não possam ser eleitos. Mas ser eleito e determinar as políticas de educação, aí já é um absurdo. É inadmissível que, durante a votação do Plano Estadual de Educação, haja uma plateia gritando ‘homem com homem dá lobisomem e mulher com mulher dá jacaré’ e esse seja o argumento evocado para tirar do Plano de Educação as referências a gênero, identidade de gênero e diversidade sexual, que tinham como objetivo promover uma educação de qualidade, antibullying e respeitosa. A pergunta é ‘onde queremos chegar?’. Cadê a elite intelectual desse estado e sobretudo dessa cidade? Onde estão os intelectuais que não se colocaram? Cadê as pessoas que não foram à Assembleia Legislativa? Cadê os artigos desqualificando isso? A educação vai ser a educação dos filhos de todo mundo. Como as pessoas não podem querer uma escola onde a diversidade vai ser respeitada? Começa­se agora eliminando as questões de gênero e daqui a pouco não vai se falar mais das questões raciais? Daqui a pouco os terreiros de candomblé vão começar a ser fechados? Porque os evangélicos começam com a perseguição aos homossexuais, mas para começar a perseguir as religiões de matriz africana é um passo. Se já não estiver acontecendo isso aqui. Os terreiros vão ser fechados? A polícia vai começar a prender mãe de santo, pai de santo e capoeiristas? Vamos retornar ao período da Era Vargas? Parece que é isso que vai acontecer, se a gente não tomar uma providência, se políticos de qualidade não começarem a ser eleitos, se não começarmos a fazer uma crítica aberta ao fundamentalismo cristão. Eu sempre digo que não se trata de atacar a comunidade evangélica. A comunidade evangélica é bastante diversa e tem a responsabilidade de dizer que figuras como o pastor Isidório não a representa. Os batistas, os luteranos, os anglicanos. A questão é que alguém está falando em nome deles em um sistema político. Se você não se coloca contra esse homem, você está permitindo que ele fale em seu nome. Eu acho que a comunidade evangélica deveria ficar envergonhada de ter alguém como o pastor Isidório falando em seu nome.

O senhor já teve tempo de fazer uma análise da nova conjuntura, a partir desse novo elemento que é o afastamento do deputado Eduardo Cunha da Presidência da Câmara e do mandato?

O afastamento do presidente Eduardo Cunha, embora bem­-vindo, antes tarde do que nunca, é um afastamento tardio. Se a gente considerar as razões elencadas pelo ministro Teori Zavascki [relator da Operação Lava Jato no STF] para justificar o presidente Eduardo Cunha do mandato e consequentemente da Presidência da Câmara, a gente se pergunta como foi possível permitir que esse elemento conduzisse um processo de impeachment contra a presidenta Dilma. O afastamento de Eduardo Cunha tardio dá ainda mais o caráter de golpe institucional a esse processo de impeachment. Mas, por outro lado, o fato dele se afastar da Câmara já melhora muito o ambiente para nós, deputados progressistas. A simples presença dele já era um elemento nocivo para nós, para o nosso trabalho. Mas ele não foi preso e oito líderes partidários subscreveram uma carta de apoio a ele. E a mesa diretora da Câmara, que foi toda composta por ele, está querendo – com a exceção de Luiza Erundina, que é membro da mesa mas não compactua com isso – garantir todos os privilégios que ele tinha como presidente da Casa. O argumento que eles têm usado é que a presidenta Dilma, afastada para se defender no processo de impeachment, continuará morando no Palácio da Alvorada e terá prerrogativas de presidente. Mas são duas coisas completamente distintas. A presidenta Dilma não está acusada de nenhum crime de responsabilidade, embora eles considerem pedalada fiscal crime de responsabilidade. Além disso, sobre a presidenta Dilma não pesam os crimes que pesam sobre Eduardo Cunha: corrupção, lavagem de dinheiro em igreja evangélica, evasão de divisas ilegal, intimidação e destruição de provas. Ou seja, são duas situações que não podem ser comparadas. Então, se por um lado a gente comemora o afastamento dele, por outro a gente considera que essa decisão é tardia e Eduardo Cunha mantém lá dentro um exército de aliados.

Foi o presidente Eduardo Cunha que conduziu aquela sessão que aprovou a admissibilidade do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, com direito a votos proferidos “pela família tradicional”. O senhor já conseguiu tirar uma síntese daquele dia, que, apesar de recente, já é histórico?

O Diap [Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar] diz que, depois de 64, esse é o Congresso mais conservador. Nada daquilo para mim foi surpresa, porque eu convivo com aquelas pessoas todos os dias. Eu estou no segundo ano do meu segundo mandato. Muitas daquelas pessoas eu já conhecia. Para o Brasil, para a maioria do povo brasileiro, aquilo foi uma surpresa, porque a maioria do povo brasileiro vive alheia ao que se passa no sistema político. A maioria do povo está preocupada em tocar suas vidas, colocar o pão de cada dia na mesa, cuidar da escola dos seus filhos, da sua vida prática, ordinária. Essas pessoas não se interessam muito pela política e não são estimuladas a se interessar pela política, de modo geral. Então, quando a maior emissora do país decide suspender a sua programação, que em geral serve como uma espécie de anestésico para as pessoas no domingo, e decide cobrir a votação do impeachment, o tiro acaba saindo pela culatra. Nem eles imaginavam que o espetáculo seria tão grotesco. Esse Congresso é conservador, reacionário, não representa a população brasileira. Está certo quem diz que aquele Congresso representa o Brasil, porque aquelas pessoas foram eleitas, óbvio, parte daqueles preconceitos estão arraigados nas almas de muitos brasileiros. Preconceitos de classe e conservadorismo. Mas também está certo quem diz que aquele Congresso não representa o Brasil, porque a face da política no Brasil, até agora, foi definida pela força da grana. Talvez isso mude nas próximas eleições, porque o Supremo Tribunal Federal proibiu o financiamento empresarial de campanha.

Então a perspectiva de mudança desse perfil conservador seria uma reforma política?

Seria uma reforma política muito mais profunda. A gente não teve, isso não aconteceu. Mas pelo menos o Supremo Tribunal Federal proibiu o financiamento empresarial de campanha. Isso pode ter um reflexo no futuro. Mas, até agora, a face foi definida pela força da grana. Então, isso faz a Câmara dos Deputados, e o Congresso Nacional como um todo, não um reflexo da sociedade, mas um reflexo das oligarquias políticas que mandam nesse país. A porcentagem de pessoas autodeclaradas negras [no Congresso] é irrisória, se comparada com a quantidade de pessoasautodeclaradas negras na sociedade. Se a gente comparar o percentual de mulheres na Câmara e no Senado com os 53% de mulheres que constituem a sociedade brasileira, nós vamos ver que a representação feminina é irrisória. O percentual de representantes de trabalhadores é irrisória, se comparada à quantidade de empresários que está lá dentro, de barões do agronegócio. Se a gente comparar à população LGBT, só tem uma pessoa declarada, que sou eu. Então, nesse sentido, o Congresso não representa a sociedade. E talvez isso tenha chocado muito as pessoas. E também tem a dimensão estética. Aquelas pessoas parecem saídas de uma história escrita por Dias Gomes. São os coronéis da ficção. A avaliação que eu faço é que nós estamos muito mal, que há cada vez mais um apartamento entre o sistema político e a cultura política. A cultura política está em transformação e o sistema político está enrijecido. Daí nasce a crise de representação. Há movimentos sociais novos surgindo. Há o movimento de cultura viva, os movimentos hip­hop. Ou seja, há uma cultura em transformação e o sistema não reflete essa transformação. Ainda na votação do impeachment, houve o episódio da cusparada que o senhor deu no deputado Jair Bolsonaro. Houve muita crítica na internet à sua reação, assim como muita gente o apoiou nas redes sociais.

Como o senhor recebeu essas opiniões?

Eu acho a crítica estranha. E hipócrita. Hipócrita porque eu acho muito interessante, para ser irônico, que alguém considere legitimo um gangster ocupar a Presidência da Câmara, um deputado federal proferir publicamente ideias fascistas, racistas e homofóbicas, mas se choquem com o cuspe na cara desse deputado. Acho curioso que as pessoas não levaram em conta que aquela reação minha foi contextual. Além de eu sofrer um assédio moral e um bullying há seis anos, desde que assumi meu primeiro mandato, de eu ser vítima de uma difamação sistemática e orquestrada nas redes sociais, que me associa a coisas terríveis, uma difamação financiada por igrejas evangélicas neo pentecostais e pessoas ligadas a esse deputado, naquele momento nós estávamos sobre uma pressão absoluta. Eu dei o meu voto sob uma chuva de insultos homofóbicos. As pessoas não levaram isso em conta. É óbvio que elas não são burras. Elas estão fingindo para si mesmo que estão indignadas com o cuspe. Na verdade, o que incomoda essas pessoas é o fato de eu ser homossexual, de eu ser gay e fazer o melhor mandato desse país, ter reconhecimento internacional, promover uma democracia de alta intensidade, ter estofo intelectual e ser homossexual. Elas não admitem isso. Elas ficam buscando uma razão para botar para fora o ódio, o rancor, a inveja, pelo fato do meu mandato ser o melhor mandato parlamentar e eu ser homossexual assumido. Nós temos um genocídio da população negra em curso no país, principalmente onde a população negra é maioria, mas você viu alguém colocar no seu Facebook essa indignação? Mas as pessoas correram para dizer que estavam indignadas porque eu cuspi na cara de um fascista. A gente precisa cada vez mais de desobediência civil. Aquele homem tinha batido em uma deputada, chamado ela de vagabunda, dito que só não estupraria ela porque ela é feia, ele esmurrou o senador Randolfe Rodrigues na frente do DOI­CODI, numa visita da Comissão da Verdade, lamentou que a ditadura não tenha matado mais pessoas, debochou das vítimas que procuram as ossadas dos seus familiares mortos pela ditadura e ele me difama há seis anos. E eu acho que cuspi tardiamente na cara dele.

A esquerda tem sido apontadas por erros e por talvez ser responsável por esse recrudescimento do fascismo no Brasil. A derrota desse projeto petista ou lulopetista é, na opinião do senhor, uma derrota de toda a esquerda?

Eu acho que primeiro a gente precisa distribuir melhor as culpas. Não é que a esquerda e o PT não tenham sua parcela de culpa nesse estado de coisas em que nos encontramos. Mas culpar a esquerda é de uma canalhice atroz, de uma desonestidade intelectual sem precedência. O fascismo cresceu não porque o PT fez conciliação de classes com as oligarquias políticas. O fascismo cresceu porque os derrotados nas sucessivas eleições em que o PT saiu vitorioso decidiram flertar com o fascismo, como forma de destituir o poder do consórcio do qual o PT passou a fazer parte. Principalmente o PSDB e a figura nefasta de Aécio Neves são responsáveis por isso, pelo empoderamento do fascismo no Brasil. Foi o PSDB que decidiu empoderar grupos e políticos fascistas como forma de desestabilizar o PT e expulsá­lo do condomínio do poder. Além do PSDB, a mídia, que sempre serviu ao PSDB. Notadamente, as Organizações Globo, o Grupo Abril, que pertence aos Civitta, a família Mesquita, que controla o Estadão, a família Frias, que controla a Folha de São Paulo, os Saad, que controlam a Bandeirantes, o grupo que domina a Jovem Pan, que é um grupo de extrema direita, e em certa medida o SBT também. Fora a Record com a Igreja Universal. Então, culpar a esquerda é ser desonesto intelectualmente. Na verdade, o Democratas e PSDB, que são os dois partidos da direita clássica no Brasil, decidiram flertar com esses grupos. E a imprensa fez uma cobertura desonesta, buscando responsabilizar o PT por todos os problemas que havia nesse país. Estamos vivendo uma crise econômica internacional, que tem a ver com a crise chinesa, já que a China era a grande importadora das commodities agrícolas que favoreceu o Brasil na Era Lula, essa crise econômica mundial se reflete localmente e a imprensa decide culpar a presidenta Dilma por uma crise econômica mundial. Durante essa crise, as elites e as oligarquias econômicas pensam ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’. Então, diante da crise, o que eles vão fazer? Vão cortar gastos sociais. E, para isso, precisam tirar do consórcio do poder o sócio minoritário, o sócio mais novo, que é o PT. Eles pensam ‘agora podemos tomar o Estado para nós, podemos descartar o PT’.

Fora a conciliação de classes, que se provou fracassada, qual seria a saída para as esquerdas?

Luta. Luta. As esquerdas sempre foram contra hegemônicas, elas nunca foram hegemonia, sobretudo a nova esquerda. Eu diria que eu sou um homem de esquerda de quarta geração. Isso significa que, ao contrário dos meus colegas das gerações anteriores, que sempre viram na luta de classes a chave prioritária para a luta das esquerdas, eu vou além. Para mim, a luta de classes é importante, a dimensão de classe não pode ser perdida, mas não podemos deixar de observar que as questões que nos afligem hoje vão além da questão de classe. Nós temos as questões de gênero, fundamentais, as questões raciais, toda a problemática que envolve a população LGBT, os conflitos religiosos têm que ser levados em conta, sobretudo as religiões minoritárias, e temos as mudanças climáticas, decorrentes do aquecimento global. Essa é a nova agenda da esquerda e é a partir dessa agenda que a esquerda tem que lutar. No caso do Brasil, nós temos que lembrar que, Dilma ficando ou Dilma saindo, nós temos luta pela frente. Se a Dilma ficar, ela vai governar com dificuldade, porque o Congresso Nacional está tomado pela plutocracia e pela cleptocracia. Se a Dilma não ficar, nós temos um governo ilegítimo. Não podemos nos submeter a um governo ilegítimo. Daqui pra frente é desobediência civil. Eu fui chamado pra dar uma entrevista para o Estadão, para que eu avaliasse como ficariam as questões das minorias no governo Temer. Eu falei que não ia dar entrevista, porque eu não reconheço esse governo. Eu não vou falar de um governo ilegítimo, fruto de um golpe institucional. Daqui pra frente, nós temos uma luta, sobretudo umaluta de convencer os trabalhadores, as pessoas comuns, porque elas ainda não se deram conta do mal que virão sobre elas. Enganadas pela televisão, pela cobertura do Jornal Nacional, pela cobertura da grande imprensa, elas acham que, com a saída de Dilma, tudo vai melhorar. As pessoas foram convencidas disso, não é? ‘Quando a gente erradicar o PT da face da terra, o mundo será um paraíso’. Um paraíso como aqueles exibidos naquele jornal Sentinela, das Testemunhas de Jeová. Só que não tem paraíso. O que vem por aí é um inferno, sobretudo para os trabalhadores.

Posso considerar, então, que o senhor também defende a proposta de eleições gerais que inclusive alguns setores do seu partido defendeu?

Eu acho que, acontecendo o impedimento da presidenta Dilma, nós temos que urgentemente defender eleições gerais, Diretas Já!. Nós temos que partir imediatamente para o movimento de eleições para presidente da República. A soberania tem que ser devolvida ao povo. O que está acontecendo é um escândalo. São 54 milhões de votos sendo cassados para canalhas assumirem a Presidência da República, canalhas que perderam sucessivas eleições. É para o Democratas, o PSDB e as facções do PMDB, que querem o condomínio do poder só para si, chegarem à Presidência da República, porque eles sabem que jamais serão eleitos. A pesquisa Datafolha mostra que Aécio Neves está com baixíssimos índices de intenção de votos, que mesmo Ciro Gomes está com baixíssimos índices de intenção de votos e que Marina e Lula ainda figuram com maiores intenções de voto. O Lula vem sendo desconstruído há 14 anos. E um cara que vem sendo desconstruído pela mídia há 14 anos ainda aparece como um dos que tem melhor índice de intenção de votos. Eles acharam a via do golpe como o caminho mais curto para chegar ao poder. Nós não temos que nos submeter a isso. Nós, movimentos sociais, todos nós, temos que pedir eleições diretas já, porque o que aconteceu foi uma eleição indireta.

Fonte: A Tarde

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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