"Fim das doações empresariais é retrocesso", diz Tiago Ayres

A imoralidade está na ineficiência dos mecanismos de controle das doações - Foto: Joá Souza | Ag. A TARDE

A política passa por uma judicialização, diz o advogado Tiago Ayres, mestre em Direito Público pela Ufba e membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB Nacional. Segundo ele, um dos exemplos do fenômeno foi a decisão do STF de tornar inconstitucional a doação de empresas a campanhas, após o Congresso aprovar uma reforma política. Ayres critica ainda o “avanço” do TSE em um campo do legislador.

Foi aprovada uma reforma política ou essa é mais uma minirreforma, ou ainda, como alguns chegaram a dizer, uma contrarreforma?

É tudo, menos uma reforma política. Por reforma política, a gente deve entender uma revisita a institutos do Direito Eleitoral, visando o fortalecimento do princípio democrático no nosso Estado de Direito. Tivemos foi até um pouco de contrarreforma, sobretudo no que diz respeito à impossibilidade de doação empresarial, que eu entendo ser um retrocesso. O que se apresenta neste momento como remédio é aquilo que, na campanha de 89, foi tido como veneno: o financiamento público. Hoje, o único lugar no mundo em que se tem o financiamento exclusivamente público é o Butão. Os Estados Unidos, por exemplo, têm uma disciplina, é claro. Existem limites, assim como na Grã Bretanha. No Brasil, a gente tem um modelo que permitiria essa participação da iniciativa privada, não fosse o julgamento recente do Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade dessa hipótese.

O TSE já cogita permitir que as doações de empresas ocorram até o final deste ano. Não parece contraditório, já que se declara inconstitucional e depois pode-se permitir por um tempo?

Hoje, existe uma judicialização da política. É muito contundente a atuação da Justiça, em especial da Justiça Eleitoral, nas decisões políticas fundamentais. Veja o caso da fidelidade partidária. Não existe em nenhum lugar da Constituição qualquer referência à perda de cargo eletivo por infidelidade, quando o indivíduo muda de um partido para outro sem justa causa. Vem o TSE e, por meio de uma resolução, simplesmente inclui no nosso ordenamento jurídico essa possibilidade.

Esse julgamento do STF seria um exemplo disso?

Sim. A campanha brasileira é uma das mais caras do mundo. No ano passado, segundo o TSE, foram gastos R$ 3,5 bilhões. E a reforma estabelece limites. Cada empresa só podia doar até 2% do seu faturamento bruto. Isso já existe. Mas a reforma inclui mais alguns requisitos. Cada empresa só poderia doar até o teto de R$ 20 milhões. E, desses 2% que a pessoa jurídica poderia doar, somente até 0,5% poderia doar para um único partido. Embora eu reconheça os avanços, aproveito para fazer uma crítica. Porque, nessa mesma reforma, a doação passa a ser para os partidos. Ora, recebendo esses recursos, os partidos vão doar conforme lhes convier.

Os tetos para gastos de campanha já existiam ou são uma novidade?

Não existiam. Os partidos estabeleciam quanto deveriam gastar nas campanhas. Agora, o referencial é: para as candidaturas de presidente, governador e prefeito, você pode gastar até 70% do valor da maior campanha na última eleição. No caso de deputados, senadores e vereadores, também até 70%.

Isso causaria um barateamento a cada eleição.

Sem dúvida. E, além disso, havendo segundo turno, esse limite seria de 50%. E, no segundo turno, os gastos só poderiam ser em até 30% do valor do primeiro turno. Existe um esforço no mundo jurídico de se rever essa cultura existente no Brasil, de aprisionamento do poder político pelo poder econômico. O que se quer é neutralizar ao máximo a influência do poder econômico sobre as estruturas políticas. Esse projeto aprovado pela Câmara vai nesse sentido.

Mas muitos partidos, principalmente de esquerda, colocam como a causa primária da corrupção o financiamento privado. Como seria possível essa moralização das campanhas sem cortar o financiamento privado?

A imoralidade não está na hipótese de financiamento empresarial das campanhas. Está na ineficiência dos mecanismos de controle dessas doações. Na França, o financiamento é público, havendo apenas a possibilidade de financiamento por pessoas físicas. Mesmo assim, não raras vezes, nos deparamos com escândalos por lá, a exemplo do que aconteceu com Nicolas Sarkozy, quando houve também irregularidades apontadas em relação à sua prestação de contas. É uma grande hipocrisia achar que todo mal que eventualmente grasse no processo eleitoral seja reflexo da atuação ou interesse das empresas em financiar campanhas. As empresas geradoras de riqueza e de empregos são sujeitos no processo político também. Qual é o problema de uma empresa investir em uma candidatura, ao identificar que determinado cidadão defende bem determinada tese, alinhada à visão de mundo da própria empresa? Imagine uma empresa que prega a sustentabilidade, a máxima responsabilidade ambiental, e queira investir na campanha de um candidato com larga experiência na defesa dessas bandeiras também. O problema está em partir do pressuposto de que, ao doar, a empresa ganha um tíquete para ter contratos e participar de licitações de maneira favorecida junto ao Estado. Se o problema está na participação de empresas em uma espécie de “troca-troca”, que se combata esse mal. E não impedir de maneira absoluta o financiamento empresarial.

E como melhorar esses instrumentos de controle?

Com a sanção da presidente, por exemplo, a esse projeto da reforma, onde há limitações à doação, além de um aprimoramento dos mecanismos de controle, quando se estabelece, por exemplo, que a prestação de contas passa a ser quase simultânea ao recebimento da doação pelos partidos. No prazo de 72 horas, os partidos deverão informar os valores recebidos, os doadores, com CNPJ e CPF, em um sítio específico criado pela Justiça Eleitoral.

Além de ser contra a proibição ao financiamento empresarial, o senhor vê consequências negativas?

Eu vejo. Recentemente, a Grã Bretanha discutiu essa hipótese de financiamento público. Mas, em função do momento que vive a Europa como um todo, em que se impõe um ajuste muito grande, eles chegaram à conclusão de que seria algo absolutamente inconveniente. E eu acho que vale também para o Brasil, que passa por uma enorme crise. O governo tem se esforçado no ajuste fiscal e vamos gerar mais gastos para o setor público?

Qual é o ponto mais positivo da reforma?

As limitações mais claras para o financiamento de campanha. Também entendo que houve avanços na medida em que as campanhas no rádio e na televisão diminuíram em tempo. Passaram de 45 para 35 dias. Menos tempo de campanha significa também menos recursos a serem aplicados. E o cuidado em viabilizar campanhas mais limpas, com a proibição de propagandas em muros.

O que acha da redução do prazo de filiação para se candidatar e a janela?

Atualmente, para que qualquer cidadão figure como candidato, ele precisa estar filiado a um partido pelo menos um ano antes da eleição. Com essa reforma, passou-se a exigir seis meses. Há aqueles que dizem que isso é inconstitucional. Não é. A Constituição apenas exige filiação partidária. Não estabelece prazo, o que é feito pela legislação infraconstitucional. A reforma também introduziu a possibilidade de mudança de partido nos 30 dias anteriores a esse prazo de seis meses. É o que eles estão chamando de janela migratória. Particularmente, não vejo nenhuma inconstitucionalidade do ponto de vista técnico, já que não se está negando a fidelidade partidária, apenas admitindo a possibilidade de o cidadão mudar de partido nesse prazo sem perder o cargo eletivo que ocupa. No Brasil, tomou um corpo muito grande essa defesa da fidelidade partidária. Só que aqui nós sempre cometemos um equívoco muito grande: a gente importa os institutos sem que passem pela alfândega cultural. A gente fala de fidelidade partidária como se o cidadão brasileiro reconhecesse nos partidos seus representantes. Mas não há uma relação madura entre partidos e cidadãos. Daí porque querer impor a ideia da fidelidade partidária é algo absolutamente nocivo. Antes de se cobrar fidelidade dos mandatários aos partidos políticos, como faz a resolução, é necessário cobrar fidelidade dos partidos a si mesmos. O que a gente precisa é fortalecer o sistema partidário para que possamos agigantar a missão dos partidos, torná-los mais sólidos e, a partir de então, falar de fidelidade partidária.

Configurada a existência das pedaladas fiscais do governo federal, há um ataque ou afronta à Constituição?

Em tese, sim. A pedalada fiscal é uma manipulação indevida das finanças públicas, configurando até mesmo improbidade administrativa, quebra da confiança que é depositada pelos cidadãos na administração pública. De modo que, violando o dever de moralidade, legalidade e eficiência expressamente previstos na Constituição, fica configurada a prática de ilícito, que pode ensejar algum tipo de responsabilização da presidente da República. É claro que essa discussão tem diversas repercussões. Pode vir a ter repercussão penal, política e eventualmente eleitoral. Há uma ação de investigação judicial eleitoral em curso no TSE contra a presidente da República, em que se discutem questões relativas ou ligadas de alguma forma a essas manobras fiscais. Nesse caso, poderia haver a cassação da chapa, que é una, funciona como se fosse um só candidato. Se cai a presidente, cai também o vice-presidente.

Fonte: A Tarde

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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