Fernando Pessoa ajudou mago a forjar suicídio e profetizou a própria fama

Num lugar chamado Boca do Inferno, em Portugal, um bilhetinho dizia: “Não posso viver sem ti. A outra ‘Boca do Inferno’ vai pegar-me –e não será tão quente quanto a tua!”.

O autor era o ocultista britânico Aleister Crowley, chamado pelo apelido carinhoso de A Grande Besta 666 (e saudado por Paulo Coelho e Raul Seixas em “Sociedade Alternativa”). Mas até o capeta sofre por amor –e Crowley resolveu simular um suicídio para se livrar de um romance tão ardente quanto conturbado.

Sabe quem o ajudou no plano? O poeta português Fernando Pessoa (1988-1935), que depois revelou a história em uma entrevista. Entrevista de mentira, diga-se, porque o autor inventou as perguntas e as respostas. Pessoa tinha interesse em magia, astrologia e ocultismo.

É um poeta metido em histórias como essa –e dando uma risadinha de escárnio– que surge de “Como Fernando Pessoa Pode Mudar a sua Vida”, livro de Jerónimo Pizarro e Carlos Pittella.

Pizarro, pesquisador da Universidade de Los Andes, na Colômbia, e Carlos Pittella, da Universidade de Brown, são dois dos principais nomes dos estudos pessoanos hoje.

O título remete ironicamente às obras de autoajuda para mostrar um Fernando Pessoa pouco conhecido. O autor, dizem os pesquisadores, acaba eclipsado por suas grandes obras –mas em sua arca ainda há o que conhecer.

“Cada documento tem uma história. Contamos nos dedos quantas pessoas passam pelos papéis do Pessoa com frequência. Queríamos dar uma ideia do arquivo como um todo, é um labirinto”, diz Pittella à Folha.

Embora bastante conhecido hoje, Pessoa só publicou um livro em vida, “Mensagem” (1934). Estima-se que a maior parte do que deixou escrito continue inédito.

Mas há uma pista de quando ele será inteiramente conhecido, pois o autor profetizou a própria fama.

A profecia também sugere que o poeta seria uma manifestação de dom Sebastião, o rei lusitano que se escafedeu no Marrocos, em 1578, e nunca mais foi encontrado, gerando a crença em seu retorno milagroso. Se, como estimou Pessoa, esse mistério se revelar em 2.198, aí que ele vai ficar famoso mesmo.

O escritor também foi mais longe do que criar Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, seus “alter egos” mais famosos –aos 23, inventou um heterônimo que era um pássaro, chamado Íbis.

A ave não só escreveu poemas como enviava cartas para Ofélia, a única namorada do autor. “Dá-me a boquinha para comer?”, suplicava.

Há no livro, aliás, um mapa com o caminho mais longo de bonde para deixar Ofélia em casa –assim os dois podiam passar mais tempo juntos (isso quando Álvaro de Campos não se intrometia na correspondência do casal, para dizer a Ofélia que o namorado não podia vê-la).

Em outro documento, o poeta previa, por via “mediúnica”, que conheceria celebridades de seu tempo, como Ezra Pound e Picasso.

“Depois de anos, nossa visão é diferente. O Pessoa era um moleque”, ri Pittella.

O livro não se resume a notas biográficas. Que tal ter um motivo para desrespeitar o acordo ortográfico? Pessoa odiou quando, em 1911, Portugal e Brasil tentaram unificar as ortografias –mas só a terrinha acatou as mudanças.

Em um texto de grafia arcaica até para a época, ele dizia: “O Estado não tem o direito a compellir-me, em materia extranha ao Estado, a escrever numa ortographia que repugno, como não tem direito a impôr-me uma religião que não aceito.”

(Vale dizer que, embora o livro tenha sido escrito para o público brasileiro, os autores usam todos os tremas).

Apesar de, contando assim, muita coisa parecer galhofa, a obra é uma pesquisa rigorosa sobre o universo pessoano.

“Tentamos fazer um livro gracioso, com reverência aos mitos [que cercam o poeta]. A ideia é que as pessoas se apaixonem pela poesia dele. E vejam que foi como se ele tivesse transformado a própria vida em poema”, diz Pittella.

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QUE PESSOA! Anedotas e inventos do poeta português

MALHAÇÃO

Fernando Pessoa quis ficar sarado em um momento da vida: quando escreveu, em 1905, a Eugen Sandow, pai do fisiculturismo moderno, querendo comprar dois livros do atleta –e talvez tê-lo como mentor

PRIMEIRO ESTRANHA-SE

Em 1929, a Coca-Cola tentou chegar a Portugal, e Pessoa, que trabalhava em uma agência de publicidade, criou o slogan: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. A autoridade sanitária mandou proibir a bebida por achar que o slogan reconhecia a “toxicidade” do produto, além de suspeitar haver cocaína na bebida

GOOOOOOOL!

Você sabia que Fernando Pessoa pode ter inventado o pebolim e o futebol de botão antes de sua criação original, em 1922 e 1930, respectivamente? Em 1913 e 1919, surgem nas listas de projetos do poeta o “futebol para mesa” e o “críquete com tabuleiro”, com uma série de regras

VLADIVOSTÓK?

Será que o poeta tentou criar jogos semelhantes ao clássico War? Em 1915, ele propôs a uma empresa de jogos de tabuleiro a criação de “jogos de guerra”. Um deles tinha, inclusive, o conceito de conquistar os territórios dos inimigos para poder vencer

VOA, PASSARINHO

Além de seus heterônimos mais famosos, Fernando Pessoa criou um que era um pássaro, chamado Íbis. Além de poemas, a ave chegou a escrever cartas para a namorada do poeta: “Dá-me a boquinha para comer?”, pedia a Ofélia

FERNANDO, É VOCÊ?

Esta não é do livro, mas é real –e irresistível. Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa, às vezes se metia na correspondência entre ele e Ofélia, porque era contra o namoro. A moça chegou a relatar, em cartas, ter recebido telefonemas de Álvaro de Campos e até mesmo tê-lo encontrado na rua

LEITURA DE NARIZES

Pessoa chegou a planejar uma obra sobre como interpretar narizes e sua relação com a personalidade. Ele até ficava preocupado por não achar que seu nariz tinha a poeticidade necessária (!). O professor Jones, um dos heterônimos que criou, escreveu: “É absolutamente indispensável que o bardo tenha um nariz grego, com um calombo na ponta”

ESCRITO NAS ESTRELAS

Grande conhecedor da astrologia (Pessoa chegou a fazer mapas astrais de seus principais heterônimos), ele usou seus conhecimentos dos planetas para calcular a data em que foi concebido pelos pais: 20 de setembro de 1887, à 1h40

A MULHER DA BESTA

Além de ter ajudado o mago britânico Aleister Crowley a forjar o próprio suicídio, parece que Pessoa ainda teve uma queda pela mulher do bruxo. Uma semana depois de conhecê-la, escreveu um poema que era uma cantada: “Ó fome, quando é que eu como?”, dizia um verso

PEGA NA MENTIRA

O clássico poema “Autopsycographia” (sic), que tem o verso “O poeta é um fingidor”, foi datado, não por acaso, do dia 1º de abril de 1931 –o Dia da Mentira.

QUEM MATOU?

Pessoa era fã de romances policiais, dos quais também foi autor. Ele chegou a criar um detetive, o “decifrador” Abílio Quaresma, descrito como “um homem de estatura acima d’aquella que é média entre portuguezes, magro, quasi aquillo a que chamamos escanzellado, bastante curvado, o ar melancholico e deprimido, a côr má, terrosa e baça, o rosto vincado por sulcos tanto de magreza como de depressão”

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COMO FERNANDO PESSOA PODE MUDAR A SUA VIDA
AUTORES Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro
EDITORA Tinta da China
QUANTO R$ 59 (296 págs.)

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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