Do Leste russófilo ao Oeste onde colaborador de Hitler é cultuado, trajeto de motorista da Ucrânia reflete divisões históricas do país – Yan Boechat

Maxim* saiu de casa na manhã do dia 24 de fevereiro prometendo que voltava para o jantar. Não fez mala, não se despediu da mãe e nem disse adeus para Sasha, seu irmão mais novo com quem por 12 anos dividiu o quarto em um apartamento do período soviético em Kramatorsk, no Leste da Ucrânia. Apesar de acostumada com a guerra e com as bombas, tudo estava diferente naquela manhã nessa cidadezinha triste que se tornou o quartel general do Exército ucraniano na região do Donbass.

Era uma manhã bonita. Não havia nuvens no céu e os primeiros raios de sol cobriam os parques e as praças com uma tonalidade amarelada. Ao fundo era possível ouvir o som dos bombardeios. Mas o som das bombas não impressiona ninguém em Kramatorsk há muitos anos. Desde que separatistas apoiados pela Rússia declararam a independência das províncias de Donetsk e Lugansk em 2014, a guerra faz parte do cotidiano das pessoas em Donbass. Nestes quase oito anos de guerra, mais de 14 mil pessoas perderam suas vidas nessa região.

—  Panika, Panika, cuco, cuco —  dizia Maxim numa mistura de russo com onomatopeias de revistas em quadrinhos apontando para as pessoas que faziam filas na porta de bancos, farmácias e supermercados naquelas primeiras horas da manhã.

Repetia o “panika” e o “cuco” a cada fila, gargalhando e em seguida dizendo  “não há problema, está tudo bem”. Ou pelo menos era isso que eu entendia.

Até hoje não sei bem se Maxim entendia de fato o que estava acontecendo naquela manhã. Depois de meses de ameaças, desmentidos, acusações, Vladimir Putin estava invadindo a Ucrânia. Ataques estavam sendo registrados em todo o país. A guerra de baixa intensidade, com quase nenhuma movimentação dos últimos anos, estava mudando. As pessoas em Kramatorsk pareciam entender isso. As filas eram sinais de que estavam se preparando para tempos difíceis. Maxim era só sorrisos, piadas e tranquilidade. Quando uma explosão mais alta era ouvida, ele ria, e repetia: “net problem, net problem”.

Conheci Maxim naquela manhã estranha de 24 de fevereiro. Horas antes eu havia despertado com duas notícias impactantes. A primeira era de que a guerra que pouca gente acreditava ser possível começara. A segunda era de que minha tradutora e seu marido, meu motorista, desapareceram do decadente Hotel Ukraina em que estávamos hospedados. Partiu para cuidar da família e deixou a mim e a uma colega para trás sem nem mesmo nossos coletes à prova de bala e capacetes. Com informações desencontradas de ataques e avanços das tropas russas, decidimos que o melhor a fazer era sair da região de Donbass o mais rápido possível para não corrermos o risco de, na melhor das hipóteses, sermos presos pelos soldados russos.

Discriminação no Oeste

Maxim estava trabalhando há alguns dias como motorista de dois jornalistas americanos com os quais já cruzei em alguns conflitos. Naquela manhã enfiamos todas as malas e nos esprememos no Skoda Fábia de Maxim. Nosso destino era Dnipro, no centro do país e o mais longe possível da fronteira com a Rússia. Deu tudo errado. As estradas estavam fechadas e terminamos na cidade mais próxima da fronteira, Kharkiv, que estava sendo bombardeada pela artilharia russa. Os dois colegas decidiram ficar na cidade para assistir ao que acreditavam ser uma cena histórica: tanques russos desfilando pelo dentro da segunda maior cidade ucraniana. Eu e minha colega tínhamos planos mais ambiciosos: assistir à mesma cena em Kiev. Maxim decidiu seguir viagem conosco.

Foram longas 24 horas. Mas, na manhã seguinte, Maxim havia se dado conta do que estava acontecendo. Sua mãe, seu pai e seu irmão menor decidiram fugir de Kramatorsk. Iam se tornar refugiados. Ele não poderia segui-los. Tinha só 23 anos, estava em idade militar e por decisão do governo ucraniano todos os homens entre 18 e 60 anos estavam impedidos de deixar o país. Pelos próximos 20 dias Maxim cruzaria o país comigo, de Leste a Oeste e novamente de Oeste para Leste.

Maxim não fala ucraniano. E até aquele dia tinha uma genuína admiração por Vladimir Putin. Como praticamente toda a população ucraniana a leste do Rio Dniéper, Maxim e sua família têm conexões culturais, étnicas e familiares com a Rússia. Seus antepassados vieram de regiões distantes do Império Russo para povoar as planícies entre os rios Don e Seversky Donets, ricas em carvão, na segunda metade do século XIV.  Durante os anos soviéticos, toda essa região se tornou um importante polo siderúrgico da URSS.

Por conta disso, jovens como Maxim passaram a ser vistos com extrema desconfiança pelos ucranianos do Oeste do país após a deposição do presidente Victor Yanukovich, um aliado de Putin, após os protestos da Euromaidan. Nas trincheiras no entorno de Kramatorsk, era difícil encontrar um soldado que fosse de Donbass. Em 2018, passei um mês na região, visitando as repúblicas separatistas e as posições ucranianas dessa que era a última guerra esquecida da Europa.

— Não podemos confiar nessas pessoas, eles são russos, eles nem sequer falam a nossa língua — contava um soldado vindo da região de Lviv dentro das trincheiras que cortavam ao meio a pequena cidade de Zaitseve.

Atrás dele, nas paredes de madeira que sustentavam essa trincheira bem construída, era possível ver suásticas desenhadas à mão. Num muro não muito distante, o símbolo das SS estava pintado.

— Lviv natsisty!!, Lviv fashist!!, Lviv banderist!! — dizia Maxim para si mesmo, com lágrimas nos olhos, e raiva.

Havíamos acabado de sair da delegacia de Lviv, a maior cidade do Oeste da Ucrânia, berço do movimento nacionalista ucraniano. A guerra já se estendia por 10 dias e eu havia decidido deixar Kiev quando meu dinheiro acabou. A capital ucraniana estava entrando em colapso.

Havia pouca comida, o sistema bancário não funcionava, a gasolina acabara. Eu, Maxim e uma colega americana viajamos por quase 20 horas por pequenas estradas e enfrentando filas gigantescas de carros que fugiam da guerra. Desde nossa chegada a Lviv, dois dias antes, era possível perceber que Maxim era visto com extrema desconfiança.

— Eles me tratam mal porque não sei falar ucraniano, acham que sou traidor — me contara ele após um guarda em uma barreira tratá-lo com extrema agressividade.

Naquela manhã, Maxim havia ido ao mercado. Ao que parece, uma mulher o tratou mal por ele não falar ucraniano. Uma discussão teve início. Começaram a acusá-lo de espião. Um policial chegou para tentar apartar a confusão. Maxim estava detido. Felizmente ele conseguiu me mandar uma mensagem, eu entrei em contato com o departamento de imprensa do Ministério da Defesa, e consegui soltá-lo.

— Mas por favor, vamos embora daqui, não é seguro para mim — me disse ele por meio do aplicativo de tradução.

Maxim não fala inglês. No dia seguinte, voltamos para Kiev.

Culto a fascista

A desconfiança mútua entre Leste e Oeste tem alimentado a propaganda desse conflito há quase uma década. O discurso dos manifestantes que tomaram a Maidan, a Praça da Independência de Kiev, no inverno de 2013 e deporiam o presidente russófilo meses depois nunca foi muito diferente daquele de Stepan Bandera, o líder nacionalista ucraniano que apoiou a chegada do Exército alemão em 1941 e teve participação importante na perseguição a judeus na Ucrânia.

Apesar de protestos da União Europeia, Bandera foi reabilitado como herói nacional. No processo de “ucranização” que se deu após a queda de Yakunovich, passou a ser homenageado, com seu nome batizando ruas e praças. Com ele, voltaram os símbolos de ultradireita desse passado que os soviéticos tentaram apagar após o fim da guerra e da morte de Bandera, assassinado pela KGB nos anos 1950 na Alemanha. Por toda Ucrânia, é possível ver a bandeira vermelha e preta da União dos Nacionalistas Ucranianos nas áreas militares. Em Lviv, uma cidade que tem ligações históricas muito mais próximas da  Polônia e do Império Austro-Húngaro do que da Rússia, ela está por toda a parte.

Maxim se sente ofendido quando vê a bandeira rubro-negra tremulando nos checkpoints. Seu bisavô lutou na Segunda Guerra com o Exército Vermelho combatendo tanto os alemães quanto os banderistas. Sua avó lhe contava histórias terríveis dos tempos em que os alemães, os fascistas, ocuparam o Donbass. Para pessoas como ele, do Leste do País, o processo de ucrainização foi também um processo de apagamento da história da qual as gerações anteriores à sua mais se orgulhavam. O ápice soviético ainda é visto com extrema nostalgia em diferentes partes da Ucrânia.

Maxim xingava Putin toda vez que víamos notícias dos ataques a civis em cidades como Mariupol, Kharkiv ou a sua Kramatorsk. Ao contrário de Lviv, essas são cidades com a população majoritariamente russófona. Por lá, boa parte da população ainda não fala ucraniano e, até o começo da guerra, muitos tinham uma visão muito mais pró-Moscou do que pró-Kiev. Em Kharkiv, um dia antes dos ataques começarem, ninguém acreditava que seria possível um bombardeio contra a cidade.

— Eles são nossos irmãos, Putin jamais fará isso — contava Alexei, um professor de karatê conheci em Kharkiv nos dias que antecederam a invasão. Talvez por isso, naquele primeiro dia de guerra, Maxim parecia tão tranquilo. Tão seguro de que nada mais sério iria acontecer.

Deixei Maxim em Kiev no vigésimo dia da guerra. Naquele dia, como nos anteriores, Kiev estava sendo atacada. Maxim estava preocupado com seu carro. Ele ama o Skoda Fábia que ainda está pagando. Mesmo com bombas caindo perto de nós, jamais deixou de frear a cada buraco, a cada quebra-molas, a cada mínima imperfeição da pista.

A cada três dias, não importava por quanto tempo tínhamos trabalhado, ele gastava um pacote de toalhas úmidas para bebê limpando o interior do Skoda. Para sua decepção, não conseguira achar um só local para lavar o carro.

Na última sexta-feira, Maxim completou 24 anos. Por mensagem me disse que ia pra Odessa tentar encontrar um coiote para atravessá-lo ilegalmente para a Moldávia.

“Quero encontrar minha mãe, meu pai, Sasha, eles estão na Alemanha”, escreveu Maxim, decidido a não lutar. “Essa guerra não é minha guerra”, sentenciou.

*O nome do personagem foi trocado para sua segurança

 

Fonte: O Globo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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