Como o rádio, que faz cem anos no Brasil, transformou a música, a novela e o futebol


Há cem anos, no dia 20 de abril de 1923, era fundada por Edgard Roquette-Pinto a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, considerada a primeira emissora brasileira. O sonho do fundador, de usar o veículo como ferramenta de educação, não se concretizou.

Porém, de alguma maneira, o rádio forneceu a educação sentimental e o repertório comum fundamentais para que se formassem características do que entendemos como identidade nacional. A dramaturgia, o humor, a paixão pelo futebol, a política, o jornalismo, a música popular do país —nada disso seria o mesmo sem a transmissão radiofônica. Nem nossa geografia.

“Com o rádio você consegue disputar a fronteira”, afirma a historiadora Lia Calabre, autora do livro “A Era do Rádio”, publicado pela editora Zahar. “No interior do Sul, se captava muito mais as rádios argentinas. Fazer a rádio chegar às fronteiras era a garantia delas. A ideia da Hora Nacional, que depois se tornaria A Voz do Brasil, surge nos anos 1930. Era a contrapartida principal do governo para ceder a concessão pública”, afirma.

“É um programa menosprezado nas capitais, mas em muitas cidades era o único meio para se informar sobre os atos do Estado. O rádio foi muito importante na manutenção dessa integração nacional e na divulgação dos valores que compunham essa nacionalidade”, diz a historiadora.

Calabre destaca a tradição oral brasileira como potencializadora desse efeito. “Era um dado muito presente nas culturas afrodescendentes e indígenas. Quando o rádio chega, temos um Brasil rural de um analfabetismo muito grande, de mais de 80% da população”.

Nos primeiros anos do rádio no Brasil, intelectuais como Mário de Andrade e Roquette-Pinto olhavam com atenção para as experiências europeias de viés sobretudo educativo. O modelo americano, como era financiado por indústrias que produziam os transmissores, apostava na popularização do meio e consequente venda de mais aparelhos. Sua programação era, em oposição à Europa, mais comercial, alicerçada nas agências de publicidade.

“É o que acontece no Brasil entre os anos de 1930 e 1950, com agências de publicidade financiando e propondo programas”, diz Lia Calabre. “É pelo rádio que chegam ao Brasil a Coca-Cola e o sabonete Gessy. Nesse caso, um interessante cruzamento de propaganda e utilidade pública, com estímulo de hábitos de higiene.”

A consolidação do perfil de rádio brasileiro que conhecemos se deu a partir da legislação de 1932, no governo de Getúlio Vargas, quando se regulamenta a publicidade no meio. É o momento definitivo da rádio no Brasil para o jornalista e pesquisador Luiz Artur Ferraretto, autor do livro “Rádio: Teoria e Prática”.

“Muitos tomam como marco uma demonstração da tecnologia feita em 7 de setembro de 1922, mas outras do tipo já haviam sido feitas. Antes da Rádio Sociedade, a Rádio Clube de Pernambuco já havia feito transmissões ponto-massa, ou seja de um lugar para várias pessoas”, afirma.

O que não se contesta, porém, é a influência que a tecnologia exerceu sobre o país. As novelas, uma invenção cubana que já fazia sucesso na América Latina, estrearam aqui na década de 1940, desacreditadas —a primeira delas, “Em Busca da Felicidade”, era transmitida de manhã, e não no horário nobre, à noite.

Já havia experiências como o radioteatro, mas não se apostava no sucesso de histórias seriadas. O roteiro de produções como “Em Busca da Felicidade” era adaptado do original cubano, mas ia além de uma simples tradução.

“A dramatização do restante da América Latina era um degrau acima do gosto brasileiro. Isso foi ajustado aqui, numa fórmula que deu muito certo e depois chegou à TV”, afirma Calabre. “Dias Gomes e Janete Clair começaram no rádio e mais tarde acabaram ajudando a formatar as telenovelas. Uma parte significativa do que a nossa população conhece de dramaturgia é a dramaturgia televisiva.”

Da mesma forma, o futebol traz o DNA do rádio em sua história. “No início dos anos 1930, o turfe era o esporte nacional”, conta Ferraretto, o pesquisador. “O futebol cai no gosto popular por causa da rádio, colaborando para sua nacionalização a partir dos times do Rio e de São Paulo.”

Na música, o veículo construiu ídolos como Carmen Miranda, as irmãs Linda e Dircinha Batista, Francisco Alves, Dorival Caymmi, Cauby Peixoto e Ângela Maria. Figuras como Almirante, que juntava o gosto pela pesquisa e o talento como comunicador, sedimentaram a história, chamando a atenção para nomes então vistos como da velha guarda.

“Na virada para os anos 1970, com o jogo pesado da indústria fonográfica, isso muda”, afirma Calabre. “Nos anos 1930 e 1940, eram gravadas as músicas que davam certo no rádio, depois isso se inverte, com as gravadoras determinando o que ia tocar no rádio.”

O uso político do rádio no governo Vargas foi intenso, sobretudo por meio de seu Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, criado em 1939. Antes, o rádio já havia sido usado como ferramenta de informação e contrainformação.

“Na Revolução Constitucionalista de 1932, as rádios paulistas falavam que o Rio estava perdendo, enquanto as emissoras cariocas diziam que as tropas do Rio entravam em São Paulo”, conta Ferraretto, pontuando o que seria um uso político e tendencioso dessas concessões públicas.

A legislação e a fiscalização brasileiras, ressalta Calabre, sempre estiveram mais voltadas para regular aspectos técnicos do que se ater ao conteúdo do que é transmitido. Esse é um dos desafios que se apresenta para o futuro do veículo, afirma —pensar sua sobrevivência no mundo digital sem esquecer a responsabilidade de uma concessão pública.

“O digital traz uma agilidade do rádio. O Repórter Esso durava cinco minutos cravados. Conseguiu assim duas décadas de absoluto sucesso. A morte do rádio já foi anunciada diversas vezes, mas ele se reinventa, em formatos como o podcast”, diz a historiadora.

Parte dessa história do rádio brasileiro, que começa nos anos 1920 e se estende para as especulações do futuro, aparece em duas exposições no Museu da Imagem e do Som de São Paulo —”Rádio no Brasil”, uma retrospectiva da trajetória do meio, e “Padre Landell: O Homem que Inventou o Futuro”, sobre o pioneiro nas experiências com o veículo.

“Temos um rádio doméstico de 1925, um dos primeiros a serem comercializados no Brasil”, diz Renan Daniel, gerente cultural do MIS, que chama atenção também para um áudio da exposição. “Em 1964, no dia do golpe militar, o editorial do Repórter Esso foi proibido de ser veiculado. Muitos anos depois, o jornalista responsável, em depoimento ao museu, leu o texto preparado para aquela ocasião.”

O MIS do Rio promoveu também uma ampla mostra sobre o tema. “Tivemos a história do veículo presente nas fotos de Augusto Malta e um recorte de personagens negros que construíram o rádio brasileiro”, afirma Cesar Miranda Ribeiro, presidente do MIS carioca. “Que o rádio dure mais cem anos e que as novas mídias permitam um acesso a todo esse material feito até hoje.”

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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