Como investir mais em ensino básico e corrigir a inversão de prioridades na educação?

Mesmo durante a pandemia, que levou a uma crise mundial de aprendizagem, o Brasil ainda investe um terço do que as nações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em seus estudantes da educação básica. São cerca de U$ 3,4 mil por aluno ante cerca de U$ 10 mil, por ano. Muitos desses países direcionaram ainda mais recursos para as escolas nos últimos dois anos de crise sanitária. O orçamento brasileiro ficou na mesma ou até encolheu. No ensino superior público a relação é inversa. O Brasil investe U$ 14.417 por aluno, por ano, segundo dados de 2021, acima da média dos países desenvolvidos, de U$ 13.855.

Apesar de o total em dinheiro para a educação básica ser maior, já que há 45 milhões de alunos nas escolas públicas brasileiras e 2 milhões nas universidades, a diferença é inquietante para um país que pretende crescer. Por isso, será fundamental ao governo eleito no próximo dia 2 de outubro corrigir essa clara inversão de prioridades na educação. Nas últimas duas décadas, o Brasil triplicou o valor investido por aluno no ensino infantil, fundamental e médio, mas chegou a números ainda incomparáveis a outros países. No mesmo período, a Coreia do Sul passou de cerca de US$ 3 mil para US$ 12 mil por aluno/ano. Portugal, de US$ 3,5 mil para US$ 10 mil; Austrália, de US$ 5 mil para US$ 11,5 mil.

“O Brasil perde muito dinheiro com cada jovem que não termina o ensino médio ou que sai sem aprender. A imensa maioria da população está trabalhando abaixo do seu potencial porque a gente falhou em garantir o dinheiro à educação”, diz o diretor executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne. No último Pisa, prova internacional da OCDE, só metade dos brasileiros de 15 anos chegou ao nível considerado básico em Leitura – condição mínima para participar de uma vida social, econômica e cívica. E só 5% terminaram a escola sabendo resolver problemas com cálculo de probabilidade, segundo avaliações nacionais de 2019.

Nos anos pré-pandemia, a educação brasileira estava longe da ideal, mas vinha numa trajetória de melhora. Agora o País vive, pela primeira vez, um retrocesso. Entre 2007 e 2019, havia crescido de 27,9% para 61% o índice de crianças do 5.º ano que sabia o adequado em Português nos exames do Ministério da Educação (MEC). A prova é bienal e os dados de 2021 ainda não foram divulgados, mas avaliações estaduais já mostram que os alunos voltaram ao desempenho que tinham na década passada por causa do período de escolas fechadas. Foram mais de 260 dias, um recorde mundial.

As respostas sobre como melhorar a educação foram sendo apresentadas ao longo das últimas décadas por países como Finlândia, Estônia, Coreia do Sul e Cingapura. Estados e cidades, como Ceará, Pernambuco e Teresina, também se tornaram exemplos com modelos replicáveis. Mas, a maioria do País ainda convive com escolas sem estrutura adequada, secretários de educação e diretores nomeados por indicação política, professores mal preparados e mal pagos. Uma escola em que não se aprende.

Ajudam a piorar o quadro os erros da política educacional do MEC nos últimos anos. No governo Jair Bolsonaro já são quatro ministros. A pasta descontinuou programas e foi o centro de um escândalo que levou o ex-ministro Milton Ribeiro a ser preso, acusado de supostos crimes de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência após o Estadão revelar que pastores passaram a comandar sua agenda. Era uma espécie de “gabinete paralelo” que interferia na liberação de recursos e influenciava diretamente as ações do MEC.

Agora, com a redução do ICMS sobre os combustíveis e o veto de Bolsonaro a uma compensação aos Estados, a educação deve perder ainda mais. O ICMS é o principal imposto financiador da educação no Brasil. A sua arrecadação alimenta o Fundeb, fundo que mantém o ensino básico. A estimativa de redução é de R$ 23 bilhões para a educação nos Estados.

Sucesso

Os modelos internacionais e nacionais mostram que mais recursos na educação básica devem ir para um grupo de políticas que conjuntamente trazem resultados. São elas: escolas em tempo integral; alfabetização das crianças até o 2.º ano; formação dos professores focada na prática; transformação da docência em uma carreira atrativa; primeira infância; educação profissional tecnológica voltada para as vocações da juventude; internet rápida para alunos e escolas.

O reforço para políticas já em prática, como Base Nacional Comum Curricular e reforma do ensino médio, também precisa voltar a ter atenção. Com a pandemia, tornou-se urgente a recuperação da aprendizagem, priorizando tópicos mais importantes do currículo.

Na Escola Estadual Marilsa Garbossa Francisco, no Capão Redondo, sul de São Paulo, crianças de várias idades deixam suas turmas habituais uma vez por semana e são divididas conforme o conhecimento em Leitura e Escrita. Há alunos de 9 anos, que já deveriam estar alfabetizados, mostrando a idade com os dedos das mãos e sem saber escrever nomes de frutas.

O mesmo se repete no País todo; saltou de 25% para 41% o número de crianças que não se alfabetizaram em 2021. A professora usa letras de plástico, faz jogos e ensina o som com a boca. “Elas voltaram do período em casa muito defasadas, na aprendizagem, na relação com o outro, nas regras”, diz a diretora Maria Madalena Andrade.

“Gostaria de poder dizer que existem políticas que, se forem feitas muito bem, o Brasil muda de patamar, mas não é possível. É preciso mexer em vários fatores ao mesmo tempo e a capacidade de gestão para isso é maior. Nenhum fator isolado tem impacto grande na educação”, diz a presidente executiva do Todos Pela Educação, Priscila Cruz.

A responsabilização no uso dos recursos da educação é também fator crucial, completa o titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados da USP, Mozart Neves Ramos. Ele cita o programa do Ceará que há anos distribui mais recursos do ICMS para municípios com bons resultados na alfabetização – o Estado tem boa parte das cidades no topo do ranking de educação.

Mecanismo semelhante foi incluído na emenda constitucional que instituiu o novo Fundeb, em 2021. Pelo menos 10% do que é repassado às prefeituras deve passar a ter critérios como resultados em exames e aumento da equidade.

No Paraná, o profissional da rede só pode se candidatar para ser diretor de escola se for aprovado em um curso de gestão da secretaria da educação. Cada escola é acompanhada por um tutor que assiste às aulas e auxilia toda a equipe. “Se a escola não performa, tem frequência baixa, não usa educatron (plataforma tecnológica do governo), a gente troca o tutor”, diz o secretário de educação Renato Feder, ex-empresário paulista. O desempenho da escola em avaliações e a frequência dos alunos também podem garantir bônus de 14.º e 15.º salários ao diretor.

Em Teresina, que tem o maior Ideb do Brasil no ensino fundamental, todos os professores deixam de dar aulas duas vezes por mês para participar de cursos de formação focados nos erros dos seus alunos. Com a volta presencial, os docentes estão sendo treinados para retomar conteúdos. “Não adianta trabalhar com o currículo da série se ele precisa de pré-requisitos”, diz a gerente de formação de Teresina Hortiza Neves.

“O MEC tem que reassumir seu papel de coordenação, voltar a ter parcerias com Estados e municípios, olhar o País como um todo, para deixar de dependermos de cases de sucesso”, afirma o secretário de educação do Recife, Fred Amâncio, que foi o titular da pasta em Pernambuco e impulsionou a política de escolas em tempo integral. O programa é hoje modelo no País e atinge 75% do Estado.

No Brasil, são só 20% das escolas de ensino médio em um formato com mais horas e não apenas as cinco habituais – países desenvolvidos têm até oito horas diárias. O MEC deixou de enviar novos recursos para ajudar os Estados em programas de tempo integral, cujo custo com aluno no início dobra. “Não é só mais tempo. É uma escola integral que precisa de tempo porque tem um currículo diferenciado”, explica David Saad, diretor presidente do Instituto Natura. A entidade apoia a política em 20 Estados, com melhoria do desempenho e menor evasão. O currículo é voltado para o protagonismo do jovem, tem orientação de estudos, disciplinas eletivas e tutorias.

Para tudo isso, é preciso melhores professores, mais dinheiro. O salário médio do docente no Brasil é ainda a metade do que se ganha nos países da OCDE. Quase não há avaliação em serviço e muitos são formados em faculdades privadas sem qualidade ou focadas na teoria. Em países como Estônia e Cingapura, as escolas públicas têm autonomia para escolher seus professores e diretores por critérios técnicos e trocá-los se não forem bem avaliados.

“O investimento adicional precisa ser precedido de resultados de boa gestão, senão é jogar dinheiro de helicóptero”, completa Priscila. Para Mizne, a educação deve estar no centro do debate eleitoral. “Se em 10 anos o Brasil investir na melhoria do seu sistema educacional, a gente vai mudar de patamar de crescimento, desenvolvimento e desigualdade.”

Novas fontes

A discussão sobre novas fontes de recursos para as universidades públicas brasileiras é antiga e reaparece sempre em períodos de crise econômica. Estudos mostram que só transferir parte do que o governo investe em ensino superior para a educação básica não resolveria o problema das escolas e prejudicaria mais ainda a pesquisa brasileira, feita essencialmente nas instituições estaduais e federais.

Entre as soluções estão mudanças para que as universidades possam captar recursos privados e cobrança dos alunos. Ambas, no entanto, enfrentam resistência de parte da sociedade. A tentativa de votação no Congresso, em maio, de um projeto que prevê pagamento de mensalidades causou fortes reações contrárias de estudantes, professores e até artistas.

A forma como o projeto foi apresentado, sem detalhamento sobre quem contribuiria e quanto poderia ser arrecadado, desagradou até economistas que defendem o tema, como Sergio Firpo, do Insper. “Há um serviço educacional prestado que pode ser cobrado. Mas é preciso ser bem estudado para não se criar uma estrutura caríssima de cobrança e não adiantar nada.”

O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Paulo Meyer acredita que a forma mais justa é a de uma espécie de devolução, cobrada por meio do Imposto de Renda, dos formandos que tiverem altos salários. O modelo funciona bem em países como Austrália e Inglaterra. “Não resolveria todos os problemas de financiamento, mas ajuda. Não podemos ficar só na discussão sobre mensalidade.”

A mudança no perfil dos universitários após anos de políticas de inclusão ajuda nessa defesa. Hoje, 70% dos alunos de federais têm renda familiar per capita até 1,5 salário mínimo. Na USP, mais da metade dos calouros vem da rede pública. Um estudo feito pela reitoria, simulando uma mensalidade de valor factível, mostrou que o total arrecadado corresponderia a menos de 10% do orçamento atual, de R$ 7,5 bilhões.

As universidades federais ainda enfrentam redução orçamentária que chegou a 37% em dez anos. Mas, entre 2005 e 2019, o número de alunos subiu de 550 mil para 1 milhão; o de docentes, de 52 mil para 100 mil. “Não dá para fazer pesquisa de alto nível se o orçamento está comprometido com professores e aposentados”, afirma Firpo. Ele acredita que é possível mudar a estrutura, hoje engessada, para atrair o setor privado. Áreas de humanidades, em que o investimento privado é mais difícil, poderiam continuar com o financiamento público, segundo ele.

A pesquisadora de políticas públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV) Claudia Costin diz que reduzir investimentos em universidades afastaria jovens pobres. O Brasil tem só 17% da população com 25 anos ou mais com curso superior, índice bem abaixo dos países desenvolvidos. “Em tempo de revolução digital, ter uma formação só básica faz com que o jovem seja candidato a trabalhos precários e subempregos.”

 

Fonte: O Estado de São Paulo

 

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

Menu de Topo