Cientistas reclamam de novas regras para pesquisas com biodiversidade

Cientistas que estudam a biodiversidade brasileira têm feito críticas duras às novas regras estabelecidas pelo governo para quem trabalha com animais, plantas e outros organismos do país.

As exigências, que entram em vigor em novembro, incluem o cadastro online de cada amostra obtida ou estudada —ou seja, cada organismo individual que um pesquisador obtiver na natureza, analisar em museus ou consultar em bases de dados públicas.

Antes de realizar ou publicar qualquer pesquisa, será preciso inserir detalhes sobre a classificação da espécie, o ecossistema onde ela vive e o local exato de coleta (com coordenadas de GPS), tanto no caso de novos estudos quanto para os realizados de 2015 para cá.

Também haverá mais restrições para a colaboração com cientistas do exterior, que terão dificuldade para consultar coleções biológicas brasileiras —grosso modo, “bibliotecas” com exemplares preservados de seres vivos— caso não estejam formalmente associados a pesquisadores do Brasil.

Para um grupo de pesquisadores que assinou uma carta de protesto contra as novas regras na revista especializada Science, o sistema criado é draconiano e bizantino. “Os políticos do Brasil, o país com a maior riqueza biológica do planeta, continuam a sabotar o objetivo de conhecer e proteger essa riqueza”, acusam os signatários da carta, encabeçados por Flávio Bockmann, especialista em peixes da USP de Ribeirão Preto.

Em artigo nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, pesquisadores de quase 40 instituições diferentes afirmam que a legislação, se entrar em vigor, “causará um colapso burocrático da pesquisa em biodiversidade no Brasil”.

“As exigências estão na contramão do desenvolvimento científico e tecnológico do país”, diz Renato Cordeiro, pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), no Rio.

“A questão é simples e ainda não a vi ser respondida: para que serve mesmo esse cadastro, no caso da pesquisa básica [sem aplicação comercial]? Tudo o que for cientificamente relevante vai estar nas publicações”, argumenta Sandro Bonatto, geneticista da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). “É algo que teria de trazer benefícios novos muito fortes para contrabalançar mais este custo em horas de trabalho dos cientistas.”

Com efeito, os autores do artigo para os Anais da Academia Brasileira de Ciências fizeram uma estimativa de quanto demoraria para cadastrar no SisGen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado) apenas as informações sobre o DNA de seres vivos brasileiros depositados no GenBank, principal banco de dados internacional, desde 2015: mais de 7.000 “dias de trabalho”, se forem contabilizados cinco minutos para cada cadastro em jornadas diárias de oito horas.

Controvérsias a respeito de burocracia e exigências legais são comuns na pesquisa sobre biodiversidade no Brasil há décadas, em parte porque a legislação tenta equilibrar demandas distintas, com negociações envolvendo cientistas, o setor produtivo e comunidades tradicionais.

Por um lado, há a expectativa de que a imensa variedade de seres vivos do Brasil poderia se tornar a fonte para produtos inovadores em áreas como fármacos e biotecnologia (promessa que, em larga medida, ainda não se realizou).

O mapeamento científico das espécies existentes no país também é essencial para conhecê-las e preservá-las, mantendo ambientes saudáveis e cumprindo as obrigações do Brasil como membro da Convenção Sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas.

E há o objetivo de proteger tanto os interesses nacionais quanto o de comunidades tradicionais (em especial grupos indígenas) da biopirataria.

Se uma tribo brasileira descobriu a utilidade medicinal de certa planta e, a partir daí, uma empresa passa a empregar o princípio ativo do vegetal em um novo remédio, a ideia é que haja a chamada repartição de benefícios —parte dos lucros auferidos iria para aquela comunidade.

Na prática, porém, argumentam os cientistas, o excesso de regras penaliza quem quer fazer apenas pesquisa básica —e não fomenta a inovação tecnológica.

“Como saberei eu que pesquisa irá produzir resultado? Temo que grande parte da legislação possua forte conotação ideológica, com uma percepção de que, de alguma forma, os cientistas estão parasitando o conhecimento tradicional”, diz Reuber Brandão, herpetólogo da UnB (Universidade de Brasília).

“Temo que cientistas brasileiros, por mais que isso seja injusto, acabem abandonados por seus colegas internacionais, uma vez que as coisas não estão nem um pouco claras no que diz respeito a essa legislação e o que ela significa para colaborações e uso de material do Brasil”, diz Ulf Swenson, botânico do Museu Sueco de História Natural.

Outro lado

O MMA (Ministério do Meio Ambiente) enviou um comunicado detalhado à Folha em defesa das novas regras. “Nem todos os pesquisadores estão a par dos avanços que a nova legislação trouxe para incentivar a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e a inovação. Esse grupo que apresenta críticas ao sistema operacional é bem específico, composto por pesquisadores que fazem taxonomia e trabalham nos museus”, diz o comunicado.

O ministério destaca o que considera vantagens na nova regulamentação, inclusive em relação à maioria dos outros países do mundo. Segundo o MMA, ela dispensa a necessidade de autorização prévia e prevê o cadastro eletrônico apenas “caso a pesquisa alcance resultados e venha a ser publicada, ou seja objeto de solicitação de propriedade intelectual ou produto a ser comercializado”. “Apenas esse ponto já fez uma grande diferença”, diz o comunicado, segundo o qual já houve “significativa desburocratização”.

Como argumento em favor da nova regulamentação, o MMA citou um estudo realizado sob os auspícios da CNI (Confederação Nacional da Indústria) no ano passado, segundo o qual a legislação brasileira teria simplificado o acesso ao uso de recursos genéticos da biodiversidade e a repartição de benefícios desse uso com comunidades tradicionais. Entre essas vantagens, segundo a CNI, estaria a isenção de pagamento de benefícios no caso de pequenas e microempresas e a possibilidade de reduzir a proporção desse pagamento para até 0,1% da receita líquida das empresas por meio de acordos setoriais com o poder público.

“Outra diferença importante em favor da inovação na lei é que não há, no modelo brasileiro, qualquer custo de repartição de benefícios econômicos em nenhuma etapa da cadeia de inovação. Apenas reparte benefícios quem faz a exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de pesquisa e desenvolvimento tecnológico sobre o patrimônio genético”, diz o comunicado.

 

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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