Cientistas desvendam por que os seres humanos falam e os outros primatas, não
As pregas vocais dos seres humanos são as mais simples de todos os primatas —e, paradoxalmente, foi esse um dos fatores que permitiu o surgimento da complexidade da linguagem falada na nossa espécie. Parece contraditório, mas é o que indica uma grande análise comparativa do aparato vocal de macacos e do Homo sapiens.
“Já foram feitos muitos estudos sobre a anatomia do trato vocal, mas as pessoas tendiam a prestar menos atenção na estrutura detalhada das pregas vocais, que são os pedaços de 1 cm ou 2 cm de comprimento dentro da laringe que vibram quando nós falamos e cantamos”, conta Tecumseh Fitch, pesquisador americano que trabalha na Universidade de Viena e é um dos coordenadores da nova pesquisa. “Na nossa espécie, elas são bem simples, meras faixas arredondadas de tecido.”
Segundo o autor do levantamento, que acaba de sair no periódico especializado Science, em primatas não humanos, além das pregas propriamente ditas, existem pequenas estruturas por cima delas, conhecidas como membranas vocais ou lábios vocais, com a forma de tiras finas.
“Já se sabia que algumas espécies, como chimpanzés e macacos-resos, possuíam essas estruturas minúsculas, mas não havia um conhecimento sistemático sobre a presença ou ausência delas em todos os grupos de primatas”, explica Takeshi Nishimura, do Instituto de Pesquisas Primatológicas da Universidade de Kyoto, que também assina o estudo.
O primeiro passo de Fitch, Nishimura e seus colegas foi, portanto, fazer esse mapeamento sistemático. O resultado é que o Homo sapiens de fato é o estranho no ninho. Das mais de 40 espécies de primatas analisadas —desde as mais próximas de nós, como chimpanzés, gorilas e orangotangos, até os bichos do Novo Mundo que podemos encontrar no Brasil, como micos-leões-dourados e macacos-pregos—, somos a única sem as membranas vocais, as quais estão presentes, com diferentes configurações, em toda a nossa parentela.
No passo seguinte do trabalho, os pesquisadores observaram diretamente o comportamento das estruturas durante a passagem de ar por elas —exatamente o processo que produz os sons das vocalizações dos animais e da fala humana. Analisando o que acontece no aparelho fonador de animais como chimpanzés, macacos-resos e macacos-de-cheiro (estes últimos também nativos do Brasil), a diferença entre primatas não humanos e humanos ficou clara, conforme explica Fitch.
“Quando as membranas vocais vibram, elas fazem com que os chamados emitidos pelos macacos se tornem mais altos e mais agudos, mas também menos estáveis. A probabilidade de que eles adquiram irregularidades que se parecem com gritos é mais alta”, diz ele. “Ou seja, perder essas membranas e ficar só com as pregas vocais faz com que o indivíduo adquira uma voz mais grave, mais melodiosa e mais fácil de controlar. Ele vira um precursor de Elis Regina”, brinca o especialista.
E é nesse ponto, propõem os pesquisadores, que provavelmente reside o pulo-do-gato evolutivo da mudança anatômica. Para eles, a gama mais restrita e mais controlável de sons derivada das pregas vocais simples dos seres humanos e seus ancestrais seria ideal para produzir o “alfabeto” de sons de vogais e consoantes —em geral, algumas dezenas— que as línguas que conhecemos empregam.
A modificação no formato das pregas vocais não foi o toque de varinha mágica que produziu a linguagem complexa que conhecemos hoje. Várias outras mudanças evolutivas contribuíram para essa capacidade única dos seres humanos, incluindo alterações no cérebro que permitiram o controle de movimentos delicados do aparelho fonador e a capacidade de associar sons e sentidos.
Ainda resta saber também quando e como as pregas vocais mais simples da nossa linhagem apareceram. “Se conseguirmos determinar quando a perda aconteceu por meio de análises genômicas, por exemplo, a razão dessa perda pode ficar mais clara”, diz Nishimura. “Mas o nosso trabalho atual já demonstra que ela foi importante na adaptação para a fala.”
Fonte: Folha de São Paulo