A cadeira da pensão de seu João Bispo – José Jorge Damasceno

O texto abaixo foi publicado em 2012 em versão impressa, mais tarde em suporte eletrônico e foi resultado de uma entrevista bem humorada e vivaz, CONCEDIDA ao autor destas linhas, pela professora Iraci Gama Santa Luzia, que acabou por construir uma crônica procurando retratar o episódio narrado pela entrevistada em um dos trechos da conversa.  

Crê-se valer a pena sua republicação, sobretudo para aqueles que não a leram quando publicada pela primeira vez. Boa LEITURA OU, BOA RELEITURA!

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Ao amanhecer, aquele dia parecia que seria mais um como todos os que o senhor João Bispo houvera vivido até ali: o Pirulito partindo às quatro e meia da manhã, ou chegando à boquinha da noite..; o Rápido, o Misto, trens que enchiam a cidade com seu apito e com o resfolegar cansado de suas locomotivas, que quebravam o silêncio das horas, dando vida e trazendo ares de cidade àquela pacatíssima localidade do interior, mostrando ao observador descuidado, que aquele lugar não era feito só de marasmo e dos movimentos miúdos das crianças para a escola.

Ele acordou cedo, ergueu-se do leito, caminhou para o quintal, a fim de fazer sua higiene pessoal. Enquanto isso, pensava no trabalho daquele dia; no trato com os hóspedes habituais, se lhe chegaria algum novo; se daria conta do serviço que tinha sob sua responsabilidade, enfim, Seu João Bispo , como todos o chamavam, refletia naquele dia que se iniciara, como talvez o fizesse todos os dias.

Pelo meio dia, tudo dentro da normalidade: mesa preparada, os hóspedes de costume; algum outro que apenas ali se encontrava para a refeição, visto não ser possível ir até a própria casa, refazer as energias para continuar o seu trabalho.

Seu João Bispo a tudo observava, com cuidado e esmero, procurando fazer com que os que buscassem refúgio e restauro no seu estabelecimento, dali saísse satisfeito e atendido, o que, certamente, faria com que voltasse outras vezes.

Por sua vez, o dia se arrastava pesado. Talvez fosse um daqueles dias de verão de Alagoinhas, quente, com o sol em sua plenitude, forçando os que precisavam sair do interior das casas ou estabelecimentos comerciais, o enfrentar com galhardia, volta e meia limpando a testa com a mão, ou mesmo com algum lenço, talvez encontrando aqui, ou ali, uma sombra de árvore que lhe pudesse mitigar a inclemência do sol da uma ou duas da tarde, precisamente naquele horário em que a comida ainda trás ao transeunte, aquela sensação de moleza e cansaço.

 Caía a tarde e, com ela, crescia a expectativa de seu João Bispo, em torno do que poderia trazer de novo e alvissareiro para os seus ganhos comerciais, a chegada do trem daquele início de noite, que lhe pudesse ajudar nos seus anelos de dono de pensão; ou que pudesse talvez lhe mudar um pouco a rotina e trazer alguma nova da Bahia, que tanto poderia ser de alegria, de preocupação, de aborrecimento ou, quem sabe o que traria o trem, àquele senhor de meia idade, que buscava o sustento diário, através daquela atividade, por vezes de ganho incerto, mas que tinha um ritmo que ele precisava manter, sob pena de ter dissabores, na hora de fechar as contas em torno do gasto e do obtido com seu trabalho.

A sirene da Leste marca quatro e vinte, logo depois quatro e meia; saem a toda pressa os funcionários da oficina que funcionava ali próxima, como próxima era da Estação a sua pensão.

Levas de operários borbulhavam da oficina, como se de repente um formigueiro abrisse suas portas e turbilhão de formigas operárias saísse para se refrescar, ver o fim da tarde, ou buscar algum repasto para lhe mitigar a fome que açoitava, visto já ter  se passado quatro horas da última refeição…

Dali há pouco, em quase toda a cidade que abriga pouco mais de sescenta mil habitantes, ouve-se o apito do trem, ainda distante, que anuncia a sua aproximação e chegada para breve. e, não se fazendo esperar muito, surge imponente apontando na caixa d’água, vagarosa e confiantemente, chega a sua gare, parando o seu passo cansado, deixando escorregar de seu interior, as pessoas, as idéias, as mercadorias, as esperanças e expectativas, os comentários, as novidades, os mexericos e as miudezas que até então mantinha encerrados nos seus vagões, trazendo tudo isto, como se trouxesse segredos e preciosidades, que não podem escapar, antes que chegue a estação a que se destina.

De repente, ouvem-se gritos. Gritos que voam e vão longe, avançam a distância que separa a gare das casas mais próximas. E, logo voluntários acorrem ao ser que grita desesperado, grita de dor; algo não está bem consigo e, implora o socorro de alguém.

Homens fortes e voluntariosos, dispostos a compadecer-se daquela criatura mortificada pela dor, procuram tomar a seu cargo, a tarefa de a conduzir até sua casa, ou de algum dos seus, que lhe possa melhor assistir e amparar. Mas a dor era forte, o desconforto do transporte, a aumentava sobre maneira…

Ah, surge naquela cena, uma criança; uma garotinha de seus nove anos presumíveis, que, do portão de sua casa, não muito longe dali,  também ouvira aqueles gritos e, em sua disposição infantil, se aproxima e, se propõe a ajudar…

 – Esperem, esperem! Eu posso ajudar – brada a miúda.

 – Esperem que eu vou buscar uma cadeira…

 Veloz como sua idade permitia que fosse, atravessou os trilhos daquela estrada de ferro, aos saltos e, como um raio surge inesperado no céu, salta aquela criança na pensão de Seu João Bispo e, sem esperar que lhe perguntassem o que queria, foi bradando e logo passando do brado a ação:

 – Seu João, vou panhar aqui uma cadeira!

Ato contínuo fez de sua pequena, mas fértil cabeça o meio de transportar aquela cadeira e, de novo aos saltos, surge outra vez na plataforma da estação ferroviária, munida daquilo que acreditava ajudaria a minorar o desconforto daquela mulher e ajudaria a mitigar seu sofrimento expresso pelos seus gritos de dor…

 – Aqui, trouxe essa cadeira. Será que sentando aqui, ela não se sentiria melhor?

 Os homens se entre olhavam e perguntavam de onde teria surgido aquele relâmpago, que eles só viram o seu reflexo na plataforma, pedindo que eles esperassem que ela iria trazer uma solução para aquela situação que eles não conseguiam atinar? Tão nova tão pequena e já tão engenhosa e astuciosa!

Acomodada na tal cadeira, a mulher agora é transportada com mais conforto e já não grita. A criança se alegra com o resultado obtido e, segue acompanhando os homens que conduzem aquela senhora, não se saberia precisamente para onde. O que importava, no entanto, é que estava melhor e que não sofria tanto, quanto antes.

Enquanto caminhavam e viam aquela garota se distanciar, sendo levada de volta para casa pelos seus, aqueles homens por certo matutavam de si para consigo: Afinal, quem era aquela menina arisca, que surgira de repente, como uma estrela que ilumina a estrada de um viajante e, o ajuda a encontrar o caminho que procura?

Seu João Bispo ficou estupefato ao ver aquela garotinha que apenas lhe avisara que pegaria uma cadeira e, sem esperar que lhe dissesse palavra, viu-a sair com aquele objeto, sem se intimidar, considerando apenas que, naquele momento, quem precisava daquela cadeira era ela, pois com ela, ajudaria alguém a sofrer menos!

Seu João Bispo refletia, talvez aborrecido com aquele contratempo e, enquanto seu olhar navegava na direção para onde fora a garota com sua cadeira, no cérebro, ziguezagueavam pensamentos que ele rebuscava com algum esforço, para tentar saber quem era aquela criança e, sobretudo, talvez querendo entender para quê, quereria ela a sua cadeira de pensão.

Em pé, com as mãos cruzadas nas costas, Seu João Bispo, inquiria se não era aquela a menina que passava acompanhando o avô, um ferroviário aposentado, quando aquele ia para o encontro diário com um certo Senhor Cabral, um sapateiro “remendão”, que morava ali por aquelas imediações,com idéias e comportamento de comunista; se não era ela quem o conduzia pela mão, devido ao seu olhar já quase escurecido pelo tempo…

A noite o encontrou envolto em tais pensamentos e, com o olhar ainda perscrutando a plataforma ferroviária, para onde foi levada a sua cadeira, talvez esperando que a menina ou quem se beneficiou daquele objeto de seu uso privado, a fizesse tornar ao lugar de onde fora apanhada, para quê, ele não saberia dizer.

Ah, definitivamente aquele não fora um dia como outro qualquer, como ele imaginara ao levantar para iniciar sua faina cotidiana.

Ao terminar em fim, o dia que se-lhe afigurara como mais um daqueles iniciar e findar de horas da Alagoinhas do início dos anos 50, o observador atento, como se pudesse ler os pensamentos que fervilhavam sob a cabeleira já escassa do homem que vendia abrigo e alimento a forasteiros trazido pela ferrovia, no lento mas firme  avançar da noite, concluiria facilmente que, para seu João Bispo, esse dia que fora de fato atípico.

Foi o dia que o veria voltar para a cama, recobrar-se do trabalhoso marchar de seus dias, com a certeza de que lhe faltava alguma coisa, na paisagem quase imóvel daquele lugar.

Faltava uma cadeira na sua pensão.

 

José Jorge Damasceno é licenciado em História (FFPA), mestre em História Social (UFBA), doutor em História Social (UFF) e professor titular da UNEB (Campus de Alagoinhas). 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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