“A cada 10 anos, você se torna outra pessoa”, diz o escritor Hanif Kureishi

Fui apresentado a Hanif Kureishi na metade dos anos 80, e conversamos sobre a possibilidade de ele escrever ficção literária para a editora Faber & Faber, cujo departamento de ficção contemporânea eu dirigia na época. Kureishi chegou ao meu escritório com jeito de “rock star”, e me lembro de ter pensado que ele não precisava redirecionar sua carreira. Já estava se saindo muito bem com o sucesso internacional de “Minha Adorável Lavanderia”, filme cujo roteiro ele havia escrito.

Mas a verdade é que Kureishi estava astutamente ponderando seu próximo passo. Queria descobrir uma forma de expressão que pudesse sustentar um modo de vida, e sobre a qual ele tivesse algum controle. O cinema era um negócio arriscado, uma corrida do ouro. Havia dinheiro a ganhar no campo dos romances, e um clima de grande expectativa diante do surgimento de uma nova geração de escritores, a maioria deles originários de países da Commonwealth. Eu havia acabado de publicar “The Final Passage”, o primeiro romance de Caryl Phillips, e Kureishi expressou um desejo fortemente competitivo de deixar para trás seu rival caribenho.

Quatro anos mais tarde, ele completou “O Buda do Subúrbio”, no qual reconheceu maliciosamente meu papel na gestação do livro, incluindo-me como personagem -faço uma ponta como policial.

Toni Garriga/AFP
O escritor Hanif Kureishi em Barcelona
O escritor Hanif Kureishi em Barcelona

A publicação do mais recente romance de Kureishi, “The Last Word” (a última palavra) é um bom momento para revisar seu histórico. Para o “New York Times”, ele é “uma espécie de Philip Roth pós-colonial”; para o “Times” de Londres, ele é um dos “50 maiores escritores britânicos desde 1945”. Perto de seu 60º aniversário, está na idade das honrarias; recebeu uma CBE (comenda do império britânico) em 2008, acompanhada por uma estocada característica: “Se é boa o bastante para Kylie Minogue, é boa o bastante para Hanif Kureishi”. Em 2010, ganhou o prêmio PEN/Pinter. Como Harold Pinter, há pouco tempo vendeu seus manuscritos à Biblioteca Britânica.

Ao contrário de alguns de seus colegas, Kureishi não se mudou para os Estados Unidos; ele continua vivendo em Shepherd’s Bush, na zona oeste de Londres, e a escrever ficção e roteiros. Lançado no final do ano passado, “Le Week-End”, dirigido por Roger Michell e estrelado por Lindsay Duncan e Jim Broadbent, foi muito elogiado. “The Last Word” saiu na última terça-feira. Poucos escritores contemporâneos são capazes de uma dupla façanha como essa, especialmente depois de 30 anos de carreira. Mas é isso que distingue Kureishi: ele sempre operou em múltiplas dimensões (contos, ensaios, roteiros), projetando um ar brincalhão de ameaça e transgressão.

Um pouco antes do Natal, fui à sua casa, e começamos a conversar sobre suas vidas sobrepostas. Depois de anos de carreira em que pensou e falou muito sobre si mesmo, Kureishi passou a ver sua figura pública como algo que ele aceita discutir alegremente, como uma espécie de “alter ego”. Certa vez ele disse dar “pelo menos uma entrevista por semana”. “Com o tempo, você cria um relato sobre você mesmo e um dia se apanha acreditando nele. Isso se torna a história de sua vida.”Exatamente.

Pode-se dizer que ele vem jogando um jogo duplo desde que nasceu, em Bromley, filho de um pai paquistanês e de uma mãe inglesa, em 5 de dezembro de 1954. Como “filho do império”, o jovem Kureishi cresceu em dois mundos, ocidental e oriental. Originária da Índia e depois Paquistão, a família de seu pai era parte do que ele define como “classe média alta”. Kureishi prossegue: “Meu avô, médico do Exército, coronel no Exército indiano. Família grande. Criados. Quadra de tênis. Críquete. Tudo. Meu pai estudou na escola Cathedral, como Salman Rushdie. Mais tarde, no Paquistão, minha família era próxima aos Bhutto. [Família cujos integrantes governaram o Paquistão em diversas ocasiões, a partir dos anos 70.] Meu tio Omar era colunista de jornal e técnico da seleção nacional de críquete do Paquistão”.

Depois da separação entre Paquistão e Índia, em 1947, a família de Kureishi se fixou no Paquistão para criar uma nova sociedade, um Estado islâmico, e se viam como os pioneiros do Velho Oeste dos Estados Unidos. “Basicamente”, ele avalia agora, “sou uma espécie de garoto inglês, mas sempre ligado ao império. Não só sou filho de um casamento entre etnias mistas como sempre convivi com essa história”.

Seu pai, Rafiushan (Shanu), se mudou para a Inglaterra a fim de estudar direito. Quando o dinheiro que tinha acabou, Shanu conseguiu um emprego burocrático na embaixada paquistanesa, onde conheceu a futura mulher, Audrey (Buss) em um encontro duplo; o casal terminou vivendo na zona sul de Londres, com um casal de filhos (Hanif e Yasmin), e Shanu teve de aceitar uma vida de permanente decepção, com a rejeição dos romances que escrevia sentado à mesa da cozinha. “Ele queria ser escritor e artista”, diz o filho, introduzindo uma característica nota de gélida franqueza na história, “mas não conseguiu realizar sua ambição”.

Ainda que o destino de seu pai pudesse ter servido como apavorante alerta, Kureishi escolheu a literatura como caminho de descoberta e avanço pessoal. O primeiro pré-requisito para qualquer artista é ter algo a dizer, e ele tinha, bem como uma necessidade ardente de fazê-lo, reforçada pela vida em Bromley nos anos 50; “As coisas eram difíceis por lá”, ele recorda. “O racismo dos anos 50 e 60, que nós, ao contrário da França e Alemanha, superamos, era aberto. Você era forçado a encarar a diferença, o tempo todo. E por isso começava a pensar de onde vinha aquilo, e o que significava”.

Kureishi era confuso, mas singular. Era outra espécie de pioneiro, o primeiro dos muitos “escritores de cor” a ter nascido em solo britânico. “Nasci em Bromley e cresci nos subúrbios de Londres”, ele conta. “V. S. Naipaul e Salman Rushdie nasceram fora. Quando eu tinha 14 anos, era um menino paquistanês que gostava de Jimi Hendrix, usava drogas e queria sexo. Como transformar isso em livro?” Ele segue, em tom levemente professoral: “Você precisa inventar um estilo e um mundo. Era uma nova espécie de realismo inglês”. Kureishi admitia, no passado, ter “negado meu eu paquistanês”, o que significa que sua narrativa mudou. Quando o desafio a falar sobre isso, ele recua ao enigma de sua identidade: “Eu não sabia o que fazer com ela ou que uso ela poderia ter para mim. Meu pai me dizia que se eu mudasse de nome, poderia passar por branco”.

Em casa, em Bromley, o território da família não tinha relevância ou significado. Lá, ele era apenas um “paki”. Depois veio Enoch Powell [político direitista e nacionalista britânico] e seu discurso sobre “rios de sangue”. “Foi aterrorizante”, recorda Kureishi. “Achamos que seríamos deportados. Havíamos sido trazidos para cá a fim de ajudar a operar o sistema de saúde pública e os serviços públicos, mas percebemos depois daquilo que éramos apenas ‘pakis’ e negros. Havia muitos skinheads. Meu pai era perseguido ao chegar em casa do trabalho e achava que a vida era difícil demais. Mas eu gostava do meu nome. Não queria mudá-lo para Pete Brown. Por isso, o que tive de fazer foi descobrir quem eu era realmente”.

Ele prossegue: “Era algo que se via com frequência nos anos 1970: negros, gays, mulheres. Tudo isso veio de EP Thompson [historiador, autor de “A Construção da Classe Trabalhadora Inglesa”] e da ideia de que as pessoas comuns também têm história”.

Mas o processo não foi fácil. O avô e os tios de Kureishi nada tinham de comuns. “Eles nos visitavam o tempo todo”, ele recorda. “Meu avô, o coronel, era aterrorizante. Jogava muito, bebia muito, sempre na farra. Correndo atrás de mulheres. Estar perto dele era como estar perto do chefão da máfia. Eles bebiam e fofocavam. Mulheres chegavam e partiam”. Em “Minha Adorável Lavanderia” e em “O Buda do Subúrbio”, encontra-se uma versão da vida do jovem Kureishi. Outro retrato de seu avô pode ser encontrado no personagem Mamoon Azam, o tirânico velho escritor de “The Last Word”. Ao mesmo tempo, e mantendo o habitual jogo duplo, o personagem também se torna uma versão do eu literário de Kureishi.

Os livros foram essenciais para sua assimilação. Foi por meio de sua vida como escritor que ele começou a descobrir quem era e a reconciliar as porções conflitantes de sua personalidade. A duplicidade persistiu. Ele era suburbano e metropolitano. Arrogante e tímido. Artista e espectador. “Bad boy” e bom filho. Professor e arruaceiro. Provocador e cúmplice. Tinha anseios acadêmicos mas vivia a cultura das ruas. Justapor arte de elite e cultura popular se tornou um hábito. Ele citava Beckett e Kafka, mas curtia os filmes de humor da série “Carry On”, reggae e música pop.

O Reino Unido do final dos anos 1970 estava mudando, mas a grande história do período -a construção de uma sociedade multicultural (“o império contra-ataca”)- ainda estava em curso. Kureishi era apenas um entre os diversos talentos jovens (“os escritores da Commonwealth”) que estavam começando a encontrar sua voz na sociedade britânica. Então, Salman Rushdie e “Os Filhos da Meia-Noite” irromperam, em 1980. Kureishi continua a competir com Rushdie. “Não fui influenciado por ‘Os Filhos da Meia-Noite'”, ele insiste, quando menciono o assunto. Mesmo? “Não. O livro chegou tarde demais. Não havia ‘realismo mágico’ -magia alguma, só realismo- em Bromley. Minhas influências foram P. G. Wodehouse e Philip Roth”.

Ele desvia a conversa do assunto Rushdie e passa a enfatizar suas credenciais. “Gosto de me ver como escritor cômico, na tradição cômica inglesa de [Evelyn] Waugh, [Kingsley] Amis e Angus Wilson”. Mas, depois, para reforçar sua autoimagem de sobriedade literária, ele acrescenta que não quer “ser só engraçado”. “Seria realmente cansativo ter de fazer só isso o tempo todo. Gosto de escrever as partes tristes. Não há partes tristes em Wodehouse”.

A busca de Kureishi por sentido o levou a muitas partes tristes, algumas partes desconfortáveis e a outras partes que não teriam lugar nas páginas de Wodehouse: política, cultura pop, sexo, drogas e questões de raça. “Como criar uma história com isso?”, Kureishi questiona. O caminho dele para a coerência madura foi tortuoso, uma luta mais amarga do que ele gosta de revelar.

“É claro que qualquer escritor precisa inventar um estilo que o contenha”, ele aponta, “e descobrir uma nova maneira de englobar as coisas sobre ele que considera intrigantes”. A literatura, como tantas vezes no passado, se tornou a salvação do excluído. “Eu estava lendo James Baldwin”, ele conta, “e tentando ver como eu me encaixava naquela história. Ser escritor sempre me pareceu o caminho”.

Quando adolescente, período em que já escrevia peças e romances, foi aceito pelo extravagante editor Anthony Blond. No começo, escrevia contos pornográficos sob o pseudônimo Antonia French. Seu trabalho sempre tratou com grande regozijo de personagens que estão em busca da realização sexual, ou tentando escapar dela.

Ele se aproximou mais da cultura convencional ao escrever peças para o Hampstead Theatre e para o Soho Poly. Quando fez 18 anos, estava trabalhando no Royal Court -“saí de Bromley bem cedo”- e fez contato com uma nova e brilhante geração teatral que incluía David Hare, Christopher Hampton e o diretor Max Stafford-Clark. “Éramos muito politizados”, diz. “No Royal Court, nos definíamos como negros. Até as mulheres faziam o mesmo”. Então, descobrindo que não gostava de trabalhar em teatro porque o que desejava realmente era ser romancista, ele diz que “empacou”. “Não tinha como ganhar a vida. Saí do rumo”. Por fim – eureca! – o Channel 4 o convidou para escrever o roteiro de um filme: seu golpe de sorte.

O roteiro de “Minha Adorável Lavanderia” chegou ao diretor Stephen Frears, a quem Kureishi descreve como “meu melhor amigo”, acrescentando que “Frears encontrou um estilo para o filme, cujo roteiro era cheio de exageros, e conseguiu torná-lo cômico e teatral”. A visão de Kureishi sobre skinheads gays e sobre empresários paquistaneses adeptos de Margaret Thatcher, e suas mulheres, foi uma revelação. Indicado ao Oscar, “Minha Adorável Lavanderia” lhe valeu um prêmio de melhor roteiro da associação dos críticos de Nova York.

Para Kureishi, 1985 foi o momento em que os fragmentos desordenados de sua vida e arte se encaixaram. Ele enfim havia encontrado uma maneira de ser engraçado, antenado, honesto e original. Havia encontrado seu lugar. Tinha apenas 31 anos.

Refletindo sobre aquele tempo, Kureishi hoje fala em tom um tanto grandioso, provavelmente o tom que ele emprega em suas aulas (ele leciona escrita criativa na Universidade Kingston) e em entrevistas a jornalistas estrangeiros. “No começo dos anos 80”, ele declara, com peculiar distanciamento, como se estivesse falando de outra pessoa e não de si mesmo, “‘Filhos da Meia-Noite’ e ‘Minha Adorável Lavanderia’ mudaram as coisas. Você realmente sentia que a literatura britânica havia encontrado uma nova voz e um novo caminho. E tinha de fazê-lo… não era mais possível continuar do mesmo jeito. Era necessário algo novo”.

Inspirado pelo sucesso de “Minha Adorável Lavanderia” e motivado a dar aos britânicos de origem paquistanesa de sua geração uma articulação distinta, Kureishi decidiu concentrar sua imaginação na ficção. “Eu sempre sonhei ser romancista”, ele diz, falando com paixão contida sobre o papel que “O Buda do Subúrbio” desempenhou na construção de um Reino Unido multicultural.

“Se o Reino Unido é uma força cultural na Europa -e acredito que seja- isso se deve ao multiculturalismo e à diversidade”, diz Kureishi. “Estou orgulhoso de ter participado do que aconteceu. Por algum motivo, nos anos 1950 e 1960 Bromley não entrou em erupção. Foi uma revolução extraordinária, se você lembrar de como éramos deferentes, de como nos dividíamos em classes. O Reino Unido se tornou uma sociedade multicultural por engano. Ninguém refletiu sobre como deveríamos construir uma sociedade multicultural.”

“O Buda do Subúrbio”, lançado pouco depois de “Minha Adorável Lavanderia”, conferiu a Kureishi uma posição única. Ele era tanto um best seller quanto aclamado pela crítica. Criou elos entre Bombaim e Bromley, e reconciliou os dois lugares. Dentro da cultura britânica, ele era tanto um emblema do multiculturalismo quanto um provocador a respeito, especialmente para a geração ascendentes de novos britânicos. Zadie Smith recorda sua primeira leitura de “O Buda do Subúrbio”, aos 15 anos: “Havia uma cópia circulando pela nossa escola como se fosse proibida. Eu jamais havia lido um livro sobre alguém remotamente parecido comigo, antes”.

A fase pública da busca de Kureishi por significado e identidade estava encerrada.

De fato, seria Zadie Smith, no seu “Dentes Brancos”, quem faria o mais significativo avanço criativo no terreno desbravado por “O Buda do Subúrbio”. Kureish havia enriquecido (“eu me sentia um pouco desconfortável com o número de cheques que chegavam ao apartamento subsidiado onde morava”), mas suas reservas de imaginação estavam esgotadas. Ou, dito de outra maneira, ele havia aplicado tanta energia criando a síntese literária que exibira com tamanho brilho em “O Buda do Subúrbio” e “Minha Adorável Lavanderia” que não lhe restava combustível no tanque. Ele havia feito uma declaração criativa única, baseada em uma profunda interrogação de seu eu.

Como muitos pioneiros da literatura, abandonar a matriz de sua imaginação era-lhe muito difícil. Os anos 1980 acabaram, chegaram os 1990; Kureishi enfrentava um impasse. Seu ouvido perfeito havia se tornado dissonante e incerto. “O Álbum Negro” (1995), seu segundo romance, uma contemplação satírica do fundamentalismo depois da “fatwa” contra Rushdie, encontrou menos sucesso que o livro precedente. Kureishi descobriu que já não conseguia alternar com tanta facilidade os papéis de caça e caçador. “A noção que tinha a respeito de mim mesmo mudou”, diz. Os dois eventos que comprometeram seu papel simultâneo de “enfant terrible” e de porta-voz de uma geração ocorreram no terreno pessoal, em sua família.

Primeiro, ele teve filhos gêmeos. Em seguida, seu pai morreu. “Descobri que havia sido arremessado para a zona seguinte”, diz. “Eu era um moleque de cabelo comprido, circulando por Londres, usando drogas, fazendo sexo com garotas. E subitamente me vi acordando às sete da manhã para levar meus filhos ao parque. Minha vida virou. Eu me tornei adulto. Os meninos me viam como pai, eu tinha de ser responsável. Não podia mais escrever livros do ponto de vista de um menino de 17 anos”.
Que Hanif Kureishi só tenha feito a transição para a vida adulta depois dos 40 anos revela muito sobre seu investimento em seu eu adolescente. E é nesse momento, falando de sua vida como pai, que ele diz algo que talvez seja a chave para seu íntimo. “Isso é que é ótimo sobre ser escritor”, ele afirma, do nada. “A cada dez anos, você se torna outra pessoa”.

Mas essa outra pessoa que ele se tornou nos anos 1990 e no novo milênio não era um escritor que se sentisse confortável no mundo. Kureishi ainda estava em busca de sua identidade e papel. Sua musa continuava aprisionada pela perversão. Ele já havia explorado esse domínio em público. Agora, de modo muito mais controverso, tentaria fazê-lo em sua vida privada. Em “O Buda do Subúrbio”, ele havia garimpado a paisagem de sua família. Agora, trabalharia de ainda mais perto e de modo muito mais pessoal.

É possível que ele tenha se deixado atrair pelo psicodrama da vida familiar, especialmente por ser um escritor que sempre se mostrou incorrigivelmente transgressivo, tendo no coração uma “ponta de gelo”, como dizia Graham Greene.

Depois da publicação de “O Buda do Subúrbio”, sua irmã, Yasmin, o acusou, em um artigo publicado pelo jornal “Guardian”, de vender a intimidade da família, com o retrato que faz dos pais e dos avós do protagonista do livro. “Meu pai”, afirmou Yasmin, “acha que Hanif o privou de sua dignidade”. Pai e filho passaram meses sem se falar. Agora, Kureishi faz questão de me dizer: “Liguei para minha mãe hoje cedo”.

Mas as controvérsias de seu primeiro romance empalideceram diante do furor causado por “Intimidade”, um romance curto sobre um homem que está deixando a mulher e os dois filhos, um relato de ficção dilacerante que parecia chocantemente próximo da realidade (Kureishi havia acabado de deixar sua parceira Tracey Scofield e os filhos gêmeos do casal). Ele agora não fala sobre esse destrutivo episódio, limitando-se a reconhecer, ironicamente, que ele “causou dificuldades com as mulheres”.

Foi depois dessa crise que ele iniciou uma terapia com o escritor e psicanalista Adam Phillips, que ele ainda hoje mantém, com duas visitas semanais, e ao qual dá imenso valor. É inevitável, por isso, que fale do assunto em tom zombeteiro: “Você começa a se sentir melhor depois de uns dez anos”, diz. A terapia absorveu boa parte da energia psíquica de Kureishi. Em um ensaio recente, ele descreve o quanto sua ficção mudou, desde os dias de Bromley. “Estou interessado na área em que a filosofia, a literatura e a psicanálise se entrelaçam -a mente do mundo”.

Quanto mais introspectivo Kureishi se tornava, mais ralos os dividendos criativos. “Tenho Algo a Te Dizer”, seu romance de 2008, foi descrito pelo “New York Times” como “uma história vasta e divertida”. Visto sob outros aspectos, pode-se dizer que careceu de melhor edição e de mais foco artístico, como se ele tivesse produzido uma antologia casual de seus temas marcantes: sexo pervertido, a cultura metropolitana das drogas e a decadência suburbana, bordadas com traços de filosofia e psicoterapia.

Já “The Last Word”, seu novo romance, devolve Kureishi ao território pessoal. Mamoon Azam é um renomado romancista que autorizou um escritor jovem e ambicioso, Harry Johnson, a preparar uma biografia sobre ele, na esperança de que o trabalho ajude a resgatar sua carreira e reputação. A ideia de que o final de uma vida é tão interessante quanto o começo é frutífera, com ecos da relação entre Naipaul e seu biógrafo Patrick French. Mas o livro é, na verdade, um comentário sobre o complicado tumulto interno da carreira de Kureishi.

Como de hábito, o epigramático Kureishi oferece tiradas curtas preciosas. Há comentários sarcásticos sobre a Inglaterra (“uma selva de macacos”) e sobre arte (“tudo que é bom precisa ser um pouco pornográfico”), e referências a George Orwell, Johnny Rotten e Wodehouse. Mamoon é um monstro envolvente, baseado no avô de Kureishi mas também uma idealização do “alter ego” do escritor, um literato internacionalmente respeitado.

As últimas linhas do romance nos dizem tudo o que precisamos saber sobre a imagem que Kureishi tem atualmente de si próprio: “Ele havia sido escritor, um criador de mundos, alguém que conta verdades importantes. Essa era uma forma de mudar as coisas, de viver bem e de criar liberdade”.

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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