Driblando questões burocráticas e de logística, cresce mercado de alimentos orgânicos

Todas as terças, sextas e sábados, o produtor orgânico Carlos Hideyasu acorda às 2h para, depois de uma hora, cair na precária estrada de barro da zona rural de Mata de São João em direção a Salvador. “Só dá tempo de tomar um café e sair”, diz. Na tarde do dia anterior, o carro já está  organizado com os caixotes carregados de folhas, verduras e frutas para vender na capital, após um dia de colheita com a sua esposa, Mary Rosário, e um “funcionário-ajudante”. “Trabalhamos na terra quase todos os dias, quase não temos  folga”, acrescenta a bem-humorada Mary.

O casal e os colegas da região, além de produtores de outros municípios, participam  de algumas das feiras orgânicas  da cidade, como a  do restaurante Brisa (terça, às 7h) no bairro da Pituba; a da Universidade Federal da Bahia (sexta, às 7h) no  campus de Ondina; a do Parque da Cidade (quinta e sábado, às 6h) no Itaigara; e a do Light  House Bar e Restaurante (sábado, às 6h) na Barra, entre outras.

Tal rota é comum a alguns dos pequenos e médios produtores da região metropolitana, que abastecem esse mercado especializado da capital baiana, ainda concentrado nas feirinhas e em expansão para supermercados e restaurantes. São hortaliças, grãos, verduras, frutas e raízes cultivadas, geralmente, em escala reduzida e que chegam à cidade para o consumo de pessoas interessadas, sobretudo, numa  alimentação saudável, produtos frescos e sem agrotóxicos.

Carlos acredita que o público consumidor de orgânicos se preocupa tanto com a saúde do produtor – ou seja, com efeitos do contato diário com químicos do “modelo convencional” – quanto com a qualidade do alimento. “Vi muitas pessoas, inclusive  próximas, adoecerem por conta dos agrotóxicos”, diz o filho de imigrantes que, após 20 anos vivendo no Japão, retornou para assumir a propriedade do pai, que faleceu. “Ele seguia a agricultura convencional, mas eu quis mudar por conta do prejuízo à saúde”.

A arquiteta Ângela Magalhães conta que  frequenta as feiras há 18 anos. Atualmente, vai ao Parque da Cidade e conhece a maior parte dos agricultores. Em parceria com eles e outros clientes, criou uma comissão, “por enquanto, informal”, para acompanhar a produção. A razão é ajudar no processo de certificação com o selo Orgânico – considerado caro por pequenos produtores – e garantir que o cultivo seja mesmo feito sem defensivos, pesticidas, praguicidas e fertilizantes químicos. Somente  os organismos credenciados junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) podem conceder o título.

“Estamos pensando no futuro. Em alguns lugares, há uma prática em que o consumidor  garante até a produção, uma relação mais estreita, na qual o cliente paga e o produtor não fica descoberto caso perca  parte dos alimentos. É uma fidelidade”, diz Ângela, entusiasta do consumo de  orgânicos, nas suas palavras, um “caminho civilizatório e uma atitude política”.

Controle constante

A relação entre os produtores, assim como com os clientes, é baseada na cooperação, mas também na fiscalização mútua. Como conta Carlos, a Associação dos Produtores Orgânicos de Mata de São João (Afoma), da qual faz parte, é dividida em dois grupos, A e B. Cada um acompanha, com regularidade, a produção do outro. “Também serve de incentivo”, fala.

A feira do Parque da Cidade é organizada pela Associação de Produtores Orgânicos e Feirantes ( Apof) e acontece todas as quintas-feiras
A feira do Parque da Cidade é organizada pela Associação de Produtores Orgânicos e Feirantes ( Apof) e acontece todas as quintas-feiras

O objetivo do constante controle, de acordo com o produtor, é garantir que as normas estabelecidas pelo Estado brasileiro sejam cumpridas. Na definição divulgada pelo Mapa, com base na Lei nº 10.831/03, um produto orgânico é “aquele obtido em um sistema orgânico de produção agropecuária ou oriundo de processo extrativista sustentável e não prejudicial ao ecossistema local”. Implica um cuidado com o meio ambiente e também uma  aproximação do processo natural de crescimento dos alimentos.

No Núcleo JK, colônia  em Mata de São João, existem cerca de 20 produtores, alguns nascidos na região e outros de origem japonesa e/ou filhos de imigrantes. Um destes é o produtor Kenzi Nishitani, que vende os orgânicos apenas em Salvador. “Não há quem compre por aqui. Vou atualmente em três feiras. Mas depois pretendo vender para restaurantes. Já as condições dos supermercados são difíceis, porque tem bonificação e é necessário repor a  mercadoria que estraga lá. Já fiz esse tipo de entrega, mas em cada quatro, uma era bonificação, gratuita”.

Ainda é mais caro porque o processo de produção de orgânicos tem muita perda. Não utilizamos fertilizantes químicos, apenas adubo orgânico. E, na venda individual, contratamos entregadores terceirizados argumenta.” Hisae Takenami, produtora da Ecossítio Takenami

A dificuldade de ampliar esse mercado para os supermercados também consiste na exigência do selo Orgânico pela Lei 10.831/03 para a venda nesses estabelecimentos. “A Associação está  trabalhando para conseguir o selo através do Instituto Nacional de Tecnologia. O problema é o custo, entre R$ 3 mil  e R$ 5 mil, e a burocracia, que é excessiva”, afirma Carlos,   quase vizinho de Kenzi, que critica as propostas de flexibilizar fiscalização para  o uso de agrotóxicos – atualmente com debates inflamados – ao contrário do que ocorre com produtores orgânicos.

Mais estruturado, com ampla variedade de  produtos e fornecedor de estabelecimentos  grandes, a exemplo do Hiper Ideal, da Perini e dos restaurantes Ramma, Mignon  e Gergelim, o Ecossítio Takenami – hoje uma empresa, com o selo Orgânico – é considerado um dos pioneiros no ramo. Administrado pelo casal Tomohide e Hisae Takenami, funciona em duas propriedades, uma em Mata de São João e outra no município de Jandaíra.

“Essas iniciativas  começaram há uns 20 anos com  grande participação  do médico naturalista Fernando Hoisel (falecido em 2015) e um grupo de pessoas. E até hoje a gente tenta ter uma maneira diferente de trabalhar, a começar no início do processo, com uma relação direta com os  produtores,  na roça, também com o uso de homeopatia, até chegar a quem consome”, afirma Hisae. Ela pensa  que o principal desafio dos pequenos e médios produtores para ampliar esse  mercado é apostar em mais propaganda, associada a outras ações de comunicação e cursos.

Diferença de preço 

Além das redes e restaurantes, o ecossítio  também  faz entregas individuais em Salvador e em alguns lugares da região metropolitana. O cliente pode fazer o seu “carrinho” no site da empresa e receber a entrega em casa. Outra opção é pegar os produtos, que vão de frutas e verduras até soja, aipim, missô, queijo coalho, tofu, já reservados nas próprias feiras. O preço, no entanto, é mais alto. Enquanto 1 kg de banana-da-terra convencional custa entre R$ 3 e R$ 4 no supermercado, a orgânica custa R$ 6.

“Ainda é mais caro, porque o processo de produção de orgânicos tem muita perda. Não utilizamos fertilizantes químicos, apenas adubo orgânico. E, na venda individual, contratamos entregadores terceirizados”, argumenta Hisae ao explicar a diferença.

Carlos Hideyasu Nishiyama, agricultor, em sua propriedade na zona rural em Mata de São João
Carlos Hideyasu Nishiyama, agricultor, em sua propriedade na zona rural em Mata de São João

Para Nádia Molina, dona do Restaurante Brisa, que promove toda terça-feira uma feira orgânica há quase duas décadas, é necessário um estímulo às condições de produção dos pequenos agricultores para haver, consequentemente, a redução do preço. “As  pessoas que estão na linha de frente dos governos precisam se conscientizar sobre  isso. É um benefício para a humanidade, mesmo que muitos não saibam. Você não vai precisar ir à farmácia depois de comer, porque, quando você come natural, o corpo não adoece”.

A empresária, também professora e cozinheira, aponta para  a necessidade de dois movimentos no sentido de fortalecer o consumo de orgânicos. Primeiro, a ajuda do Estado “aos pequenos produtores no escoamento para a cidade” e a ampliação da venda dos alimentos nos supermercados.

A propósito, inclusive, já há oferta e consumo significativos de orgânicos nesses estabelecimentos, como mostra a pesquisa realizada pelo Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável (Organis), de 2017. Segundo o estudo, feito em nove capitais, entre elas  Salvador, 53% das compras de orgânicos no Nordeste, no ano passado, eram feitas em supermercados e 42% em feiras. Todavia, dados recentemente divulgados pelo Sebrae revelam que, do ponto de vista do produtor, as vendas diretas ao consumidor (72%) e em feiras de orgânicos (55%) continuam sendo os principais canais de comercialização.

Nádia  pontua a importância da expansão da produção de orgânicos, mas também considera fundamental a conscientização dos produtores convencionais sobre os malefícios dos agrotóxicos. “Chegam pessoas aqui com câncer e outros problemas que  mudaram a alimentação apenas quando já estavam doentes. E sentem a diferença de uma alimentação saudável, orgânica. É necessário antecipar isso”, diz a dona do Brisa.

Cultura em mudança

A partir da visão de oportunidade desse mercado, o empresário Cláudio Silveira criou, ao lado do seu sócio, o Orgânico, que hoje funciona como uma rede de restaurantes, mercados e lanchonetes (quiosques). Em Salvador, fica no Shopping Salvador. “Já é uma tendência nos Estados Unidos, na Europa”. Apesar da proposta de oferecer tais produtos, o empresário conta que há uma dificuldade de conseguir 100% de orgânicos. “Priorizamos  os alimentos saudáveis, integrais, naturais. Compramos com fornecedores de fora, principalmente de São Paulo, e também com alguns  locais, como a Biofeira, mas muitas vezes faltam    produtos ou o preço é muito alto”.

O restaurante Orgânico, no Salvador Shopping, é abastecido com fornecedores de fora e alguns poucos locais
O restaurante Orgânico, no Salvador Shopping, é abastecido com fornecedores de fora e alguns poucos locais

Segundo Cláudio, o  problema de encontrar fornecedores locais decorre da “falta de incentivo aos produtores” e da “alta tributação”. “O arroz e o feijão orgânicos custam o dobro do preço do tradicional. Como não tem uma amplitude maior, fica ainda segmentado e restrito”, critica. O dono do Orgânico complementa, porém, que é um crescimento que, ”não tem como fugir”, deve ocorrer nos próximos anos. “É uma mudança da cultura. As pessoas estão zelando por uma alimentação saudável”.

A jovem Camila Schreiber, empresária e estilista, tornou-se vegetariana (“flex”, como se autodenomina, pois  come peixe de vez em quando) há três anos e começou a frequentar, semanalmente, as feiras orgânicas. Diz também ter ampliado a visão acerca da necessidade preservação do solo e do meio ambiente.

“Comecei a procurar esses lugares em Salvador a partir da divulgação que tem sido feita em torno dos orgânicos, mas são poucos restaurantes. Para mim, é muito importante apoiar pequenos produtores, evitar os agrotóxicos e ajudar o planeta. Tento fazer isso também em outras esferas”.

 

Fonte: MUITO

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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