Crise do PT ameaça trajetória de queda da desigualdade, diz pesquisadora

Organizadora do recém-lançado “Trajetórias da Desigualdade: Quanto o Brasil Mudou nos Últimos 50 Anos” (Editora Unesp), um inventário desta chaga brasileira, a cientista política Marta Arreche diz que a profunda crise do PT põe em risco a tendência de queda da desigualdade das últimas décadas.

A “ameaça eleitoral da esquerda”, diz, sempre funcionou como incentivo para que partidos conservadores incluíssem a questão social em suas agendas. Sem a ameaça, que nos últimos 25 anos foi personificada pelo ex-presidente Lula e pelo PT, toda a agenda social seria afetada, argumenta.

Na publicação, Arretche, diretora do CEM (Centro de Estudos da Metrópole, em São Paulo), e outros 25 pesquisadores discutem aspectos das desigualdades regionais, raciais, de renda, gênero e acesso a bens públicos, entre outros. Argelina Figueiredo, Eduardo Marques, Fernando Limongi e Naercio Menezes Filho são alguns dos coautores.

Rafael Hupsel – 21.mai.2015/Folhapress
A cientista política Marta Arretche, durante entrevista falando sobre política e o lançamento de seu livro
A cientista política Marta Arretche, durante entrevista falando sobre política e o lançamento de seu livro

Folha – O livro trata de trajetórias de desigualdades em vários campos. Em que segmentos o Brasil mais avançou e em quais andou para trás?
Marta Arretche – Houve muitos avanços em 50 anos, ainda que a ritmos muitos diferentes para as diferentes dimensões. Caiu muito a desigualdade de renda, a do acesso ao ensino fundamental, à energia e à coleta de lixo. A figura do trabalhador rural que nunca foi à escola está em vias de desaparecimento. A associação entre pobreza e falta de acesso a serviços básicos diminuiu. Desvantagens de mulheres e não-brancas no mundo escolar e do trabalho foram reduzidas. A desigualdade nas condições de vida entre regiões ricas e pobres também foi atenuada.
Em nenhuma dimensão o Brasil andou para trás. Mas a velocidade na redução das desigualdades varia muito. Em 2010, só 40% dos domicílios tinham serviço de esgoto. Esta média esconde uma grande desigualdade: para os mais ricos, a taxa já oscilava em torno de 70% desde o início dos anos 80; para os mais pobres, era pouco superior a 20% em 2010.

Nos anos 70, o economista Edmar Bacha definiu o país como Belíndia. Metade Bélgica, rica e desenvolvida, metade Índia, pobre e populosa. Isso ainda é atual?
A expressão descrevia muito bem a fusão de vantagens em algumas regiões combinada à pobreza e ausência de serviços em outras. Isso caracterizava o Brasil no fim do regime militar. Em 1980, as regiões mais ricas, em particular São Paulo, não concentravam apenas a produção industrial e os salários mais elevados. A infraestrutura de serviços urbanos –energia, água, esgoto, saúde– também era bastante ampla. Os trabalhadores de mais baixa renda no Sul e no Sudeste tinham acesso a um conjunto de serviços que mesmo as classes médias não alcançavam nas regiões mais pobres, em particular no Nordeste.
O que ocorreu de lá para cá? Deixamos de ser Índia em dimensões relevantes. Hoje, 22% da população da Índia é analfabeta. Lá, o analfabetismo caiu só 1% na última década. A mortalidade infantil na Índia ainda é de 46 por mil nascidos vivos. Aqui foi diferente. De 1980 a 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu de 69 para 16 por mil nascidos. A população que conseguiu chegar ao ensino médio ou à universidade multiplicou por seis.

O Brasil é um dos campeões mundiais de desigualdade de renda. Do ponto de vista histórico, o que explica isso?
A ampla oferta de mão de obra barata e muito pouco escolarizada. Historicamente, o Brasil contou com uma oferta numérica de trabalhadores muito superior à demanda. É diferente do que ocorreu na Europa ocidental, com as políticas de emigração na transição para a industrialização e as duas guerras mundiais. Na Inglaterra, a peste dizimou quase metade da força de trabalho. Aqui, não. A oferta abundante de mão-de-obra gerou incentivos para a adoção de um modelo de industrialização com baixa intensidade tecnológica que, por sua vez, também não demandava que o sistema educacional qualificasse amplos contingentes populacionais.
Uma parcela restrita da população tinha acesso à educação. Em 1980, apenas 9% da PEA (População Economicamente Ativa) chegava ao ensino superior. Estes recebiam diferenciais salariais muito altos por seus elevados e escassos níveis de escolaridade. Por outro lado, 43% da PEA tinha até três anos de estudo. Abundantes e baixamente qualificados, disputavam um emprego mal pago.

Mais a questão demográfica.
Sim. Até ali, as elevadas taxas de fertilidade, concentradas na população mais pobre, reforçavam esta dinâmica de produção de desigualdades. Em resumo: demografia e níveis muito baixos de escolarização produzindo mão de obra abundante e barata estão diretamente associados à sobrevivência de elevados níveis de desigualdade de renda no mercado de trabalho, que é a principal fonte de renda da maioria da população. Esta realidade mudou muito de 1980 para cá, porque caiu expressivamente o número de filhos por mulher em idade fértil. Assim como os níveis de escolaridade melhoraram. Essas mudanças têm efeito sobre a dinâmica do mercado de trabalho hoje.

Portadores de títulos da dívida pública receberam R$ 75 bilhões do governo em 2014, quatro vezes mais que os R$ 18,5 bilhões entregue às 14 milhões de famílias do Bolsa Família. O Estado não está criando desigualdade?
O Estado produz igualdade e desigualdade ao mesmo tempo, porque as distintas políticas têm efeitos diferentes. A previdência pública aumenta a desigualdade, porque paga benefícios elevados a uma pequena parcela de beneficiários, ao passo que a previdência privada reduz a desigualdade, porque a maior parte destes aposentados recebe até dois salários mínimos. Quando o salário mínimo é valorizado, há um impacto positivo sobre a queda de desigualdade. O Programa Bolsa Família reduz a pobreza assim como reduz um pouquinho a desigualdade. Por outro lado, Thomas Piketty [economista, autor de “O Capital no Século 21”] corretamente contabiliza dívida pública como riqueza privada e mostra como os ganhos daí derivados aumentam a desigualdade. Parte da controvérsia sobre a trajetória da desigualdade no Brasil é que muitos estudos se concentram em apenas uma dimensão e extrapolam por dedução suas inferências para as demais. Em nosso livro, destacamos um conjunto bem amplo de dimensões relevantes, que foram examinadas separadamente.

E o sistema tributário brasileiro? Funciona mais para corrigir desigualdades ou está mais para gerador de desigualdade?
O mesmo pode ser afirmado com relação às diferentes dimensões do sistema tributário. Os impostos diretos reduzem a desigualdade, porque apenas uma parcela muito pequena dos assalariados de maior renda, que não podem se evadir do Fisco pagam impostos. Os impostos indiretos por sua vez aumentam a desigualdade, porque os mais pobres desembolsam uma parcela muito importante da sua renda em impostos indiretos sobre bens essenciais.

Que tipo de desigualdade é mais dramática hoje? Regional, racial, por gênero, por escolaridade?
O movimento feminista e o movimento pelos direitos civis foram protagonistas da agenda de redução das desigualdades na década de 60. Nosso estudo mostra que, desde então, as mulheres e os não-brancos pretos não tiveram o mesmo sucesso em suas respectivas pautas de emancipação. A partir de 1970, as mulheres passaram a frequentar maciçamente as universidades, a ponto de ser a maioria na população universitária em 2010. houve uma substancial redução das diferenças entre profissões tipicamente masculinas e femininas. Ainda que pretos e pardos tenham paulatinamente ingressado na universidade nas últimas décadas, o fato é que, em 2010, os brancos ainda eram 75% da população universitária. A redução das desigualdades em relação aos não brancos dentro do sistema escolar permaneceu restrita ao nível de ensino em que o acesso tornou-se universal, isto é, apenas no ensino fundamental. Mas a desigualdade mais dramática é aquela em que múltiplas dimensões de privação estão superpostas em um mesmo indivíduo.

Negros recebem menos que brancos mesmo quando têm a mesma escolaridade, seja ela alta ou baixa. Este aspecto é uma evidência de racismo?
Também é uma evidência de racismo, mas não só. É fato que, se o retorno da educação fosse suficiente para explicar distâncias nos rendimentos do mercado de trabalho, não haveria um gap considerável entre categorias sociais igualmente escolarizadas. Nossa trajetória de queda da desigualdade de renda discriminou desigualmente mulheres e não-brancos. Por outro lado, a política do salário mínimo tem produzido uma espécie de bolha de proteção que não apenas reduz a desigualdade entre categorias de renda quanto elimina esta desigualdade por categorias de gênero e cor. Entre os mais pobres, ser incorporado à política do salário mínimo –seja via benefícios previdenciários seja via entrada no mercado de trabalho– é um divisor de águas. Significa que as políticas de salário mínimo e de regulação do mercado de trabalho têm impacto também sobre as desigualdades de gênero e por cor.

Como a competição eleitoral impacta na desigualdade?
Este mecanismo já é bastante conhecido para as democracias avançadas. Não é só o governo partidário que leva à adoção de políticas que reduzem desigualdades. O sufrágio universal também não é condição suficiente para redução das desigualdades, como mostra a trajetória recente das democracias consolidadas e a experiência dramática dos Estados Unidos. A experiência brasileira mostra um fenômeno curioso. A ameaça eleitoral da esquerda historicamente representou um incentivo relevante para que partidos conservadores incluam a questão social em sua agenda de governo. Ainda que suas políticas possam ser diferentes daquelas que seriam preferidas pela esquerda.

Medo da esquerda?
No Brasil, desde que retomamos eleições diretas para a Presidência, todo candidato potencial sabia que teria de enfrentar o Lula na eleição seguinte. Também sabia que não entregar ou propor políticas para enfrentar a gravidade da questão social aumentaria o eleitorado potencial do PT, pois esta questão seria mobilizada na competição política. Não tratar da questão social implicaria aproximar 90% do eleitorado potencial, dada a distribuição da renda, no colo do PT. Isso em um país em que a participação eleitoral está na faixa dos 80% do eleitorado. Em resumo: a viabilidade eleitoral do PT, combinada à extensão da desigualdade e às elevadas taxas de participação, implicaram nas últimas décadas que todos os partidos tivessem que ter alguma resposta convincente para a questão da desigualdade social. É por esta razão que até muito recentemente não tínhamos direita no Brasil.

A senhora diria então que a enorme crise do PT hoje –alguns falam até na extinção do partido– representaria uma ameaça à trajetória de redução da desigualdade?
Penso que há evidências de que isto já está ocorrendo. Há claramente uma agenda conservadora que avança no Congresso, que está associada à fragilidade parlamentar do PT, entre outros fatores. A força parlamentar dos conservadores revela que a crise da coalizão de sustentação da presidente Dilma não pode ser explicada apenas pela distribuição de cargos entre os partidos da base. Na verdade, a distância ideológica e os interesses que estão representados nos partidos da base têm um papel muito importante. E tornam-se ainda mais acentuados em um contexto de ajuste fiscal, em que questões redistributivas se tornam cruciais, pois o problema é decidir quem arcará com os sacrifícios do ajuste. Em um cenário futuro, em que o PT deixe de ser um partido competitivo para a Presidência e fique com uma representação parlamentar reduzida, os termos da competição política serão inteiramente distintos daqueles com os quais convivemos nos últimos 25 anos. Não tenho dúvida que isto afetará a agenda social.

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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