Reitor de universidade baiana nega pressão do MEC após cancelamento de edital: “Normal”

O reitor da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Alexandre Cunha Costa, negou ter havido violação ao princípio da autonomia universitária na intervenção do Ministério da Educação (MEC) que culminou com o cancelamento de um edital da instituição para transexuais, travestis, intersexuais e pessoas não-binárias.

O anúncio do fim do processo seletivo foi feito na tarde desta terça-feira, 16, pelo presidente Jair Bolsonaro, em publicação em sua conta no Twitter. Federal, a Unilab tem campus em São Francisco do Conde, Região Metropolitana de Salvador (RMS).

“A Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Federal) lançou vestibular para candidatos transexual (sic), travestis, interesexuais e pessoas não binários. Com intervenção do MEC, a reitoria se posicionou pela suspensão imediata do edital e sua anulação a posteriori”, disse em publicação feita nesta tarde.

Ao A TARDE, o reitor justificou que a anulação do edital, e não vestibular, como disse o presidente, seguiu parecer da Procuradoria Federal, órgão da Advocacia-Geral da União (AGU), junto à Unilab.

Segundo o documento, o edital nesses moldes é “ilegal” porque vai contra a Lei de Cotas e os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e da ampla concorrência em seleções públicas. A seleção visava ocupar 120 vagas ociosas, ou seja, que não haviam sido preenchidas via Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Para o campus de São Francisco do Conde, estavam previstas 51 vagas, para os cursos de Ciências Sociais, História, Humanidades, Letras/Língua Portuguesa, Pedagogia e Relações Internacionais. “A seleção segrega todos os demais candidatos que não se enquadram nas categorias de gênero LGBT”, diz trecho do parecer.

Em nota divulgada nesta terça, o MEC informou que questionou a legalidade do edital via Procuradoria-Geral da República. “A Lei de Cotas não prevê vagas específicas para o público alvo do citado vestibular”, disse trecho do posicionamento. Costa confirmou ter recebido ligação da pasta questionando a legalidade do edital, mas negou que tivesse sofrido pressões da pasta. De acordo com ele, a iniciativa de abrir a seleção veio da Pró-reitoria de Graduação, mas não passou pelo crivo da procuradoria da Unilab. O reitor pondera, entretanto, que nem todas as ações da universidade precisam ser submetidas ao órgão.

“Não encaro como interferência na autonomia. É normal. Na própria ouvidoria da universidade chegaram várias manifestações. É normal que a gente converse com o MEC sobre isso, não feriu a Constituição. Não houve pressão. O máximo foi essa ligação”, defendeu.

Para Costa, o “estranho” seria não fazer nada diante dos questionamentos jurídicos sobre a legalidade do edital. Apesar de discordar que houve interferência na autonomia, o reitor classificou o caso como um “banho de água fria”, ao reconhecer a frustração das expectativas de quem contava com a inscrição no processo seletivo.

“Acho que é levantar a cabeça, não ficar desmotivado por causa disso. É um entendimento da procuradoria federal, mas a legislação pode mudar, os entendimentos mudam. Não vejo que isso possa alterar nossa trajetória institucional em relação às nossas políticas públicas para LGBTs”, disse.

Debate

Para o advogado Leandro Paraense, da Comissão Especial de Defesa da Autonomia Universitária da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA), o MEC violou, sim, este princípio constitucional, ao intervir pela anulação do edital.

Ele lembra que outras universidades baianas já fizeram seleções nos mesmos moldes. Em janeiro deste ano, a Federal da Bahia (Ufba) lançou um edital que abarcou, entre outros públicos, as pessoas trans. No ano passado, a Federal do Sul da Bahia (UFSB) abriu processo de vestibular com cotas para esta população. “Se existe uma vulnerabilização maior dessa população, o que dificulta o acesso às vagas, então é justificável o tratamento diferenciado e a reserva de vagas”, defende Paraense.

Coordenador da Casa Aurora, que acolhe pessoas LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade, João Hugo afirma que as cotas para trans são uma forma de incluí-los em espaços nos quais não possuem inserção. Homem trans, Hugo ingressou no curso de Produção Cultural da Ufba como cotista. “Você não pode criar esperanças e depois tirar. É uma transfobia institucionalizada”, lamenta. “Cota na graduação não repara erros no passado, mas facilita os processos futuros”, defende.

O reitor Alexandre Costa afirmou que a universidade ainda não sabe qual medida tomará para atender o público que ficou desassistido pelo fim do edital. Ele garantiu que a Unilab continuará com iniciativas voltadas para atender minorias.

“A gente vai ter que pensar outras alternativas fora do preenchimento de vagas ociosas. Nossa preocupação, nosso trabalho, ensino, pesquisa e extensão para LGBTs e outros grupos historicamente marginalizados com certeza não está descartado. As coisas continuam. isso não significa o fim de tudo”, falou.

Na avaliação de Paraense, a instituição poderia se valer do princípio da autonomia universitária para passar por cima do questionamento do MEC e manter o edital. Para ele, as universidades federais precisarão ficar mais “vigilantes” para evitar novas intervenções da pasta em suas decisões.

“O que gera preocupação não é que isso abra precedente jurídico, mas que o MEC se encoraje e faça ações e pressões. As universidades vão ter que se encorajar para manter suas decisões, preservando sua autonomia, mesmo diante de eventuais retaliações”, alertou.

Em nota, Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) repudiou a atitude do governo federal, “que tem se tornado o principal perseguidor de nossa população.” A entidade também classificou como transfobia, algo criminalizado em julgamento recente do Supremo Tribunal Federal (STF), como principal motivador da intervenção do MEC.

“Não nos querem nas escolas, não nos querem no trabalho formal, não nos querem na sociedade, nos querem mortas e nos impõem uma política de morte! Mas de nada adianta, pois não iremos recuar um milímetro da luta que nos trouxe até aqui com tantas conquistas”, diz trecho da nota.

Ainda segundo a Antra, estudos mostram que, no Brasil, a evasão escolar de travestis e transexuais chega a 82%, uma situação que “aumenta a vulnerabilidade dessa população e favorece os altos índices de violência que ela sofre.” “A necessidade de haver um vestibular específico para esta população vinha na contramão dessas pesquisas e demonstrava a necessidade de enfrentar dentro do próprio Estado a sua omissão”, afirma a entidade.

Fonte: A Tarde

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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