“Oração Oficial” de Waldir Pires na inauguração do Fórum Ruy Barbosa e formatura em Direito, marco na defesa da democracia, completa 76 anos – Maurílio Lopes Fontes

Neste 5 de novembro de 2025 recordamos um momento singular que marca não apenas a história da Bahia, mas a afirmação pública de um pensamento que pautou uma das mais importantes trajetórias políticas em defesa da democracia no Brasil. Há exatos 76 anos, em 5 de novembro de 1949, Francisco Waldir Pires de Souza subia à tribuna do salão nobre do Fórum Ruy Barbosa.

A data era triplamente simbólica: colação de grau dos bacharéis pela Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, centenário de nascimento de Rui Barbosa e inauguração da imponente sede da justiça baiana.

Waldir Pires, orador da turma, não se limitou a um discurso de celebração. O que apresentou foi um manifesto denso, diagnóstico grave de seu tempo e, acima de tudo, a pedra fundamental de sua concepção de democracia.

A “Oração Oficial” de 1949 é um documento que impressiona pela maturidade de seu autor. O bacharel de 23 anos define a si e aos seus colegas não como jovens exultantes, mas como uma geração precocemente amadurecida. “Nascemos, quase velhos. A fronte moça, pouco passada dos vinte anos, parece, entretanto, já tostada pela aridez da experiência, que só o avanço da idade oferece. O semblante revela, a todo momento, as preocupações e os desassossêgos que lhe conturbam a vida interior”.

Ele descreve uma juventude que não teve o direito de ser romântica, que não conheceu “a tranquilidade risonha de outros tempos” ou as “serenatas poéticas”. Em vez disso, foi uma geração moldada pelos “desencantos de um mundo convulsionado, de um mundo desajustado, de um mundo de dolorosas contradições”.

Era o mundo do pós-guerra e da angústia Waldir Pires extraiu não a resignação, mas convicções. Diante da “alegria austera” do momento, ele afirma que o que não lhes foi roubado foi “a vontade firme, o propósito ardente de lutar para extinguir as iniquidades que o egoismo dos homens ainda tolera e protege”.

Aqui, a “Oração Oficial” torna-se uma reflexão esclarecedora. Waldir Pires propõe “novos rumos” para o Direito, e o faz através de uma análise crítica do liberalismo clássico, mesmo estando no templo de Rui Barbosa.

Ele reconhece o mérito histórico da geração anterior, que lutou pela “liberdade individual e dos direitos subjetivos, contra a força e a opressão do poder do Estado”. Contudo, registra a exaustão desse modelo. O problema, diagnostica Waldir Pires, é que, liberto do Estado, o indivíduo “tornou-se, ele mesmo, o opressor do seu próximo”.

O jovem bacharel ataca o coração da doutrina liberal: a “igualdade absoluta de todos em face do Direito”. Para ele, esta era uma “contradição da iguadade social, pois partia de um critério ilógico e artificial que ignorava as desigualdades de facto”.

O Direito liberal do “laissez faire”, afirma Waldir Pires, tornou-se “amesquinhado, pobre”, uma ferramenta para “manter, apenas, o statu (grafia original) quo das coisas e a vigência das injustiças manifestas”.

O que propõe, então, o orador? A refundação da própria democracia.

Waldir Pires afirma que o Estado democrático “começou a dizer aos homens, que precisava modificar-se”. A democracia, para ele, não poderia mais se limitar à sua forma “meramente política; mas, sobretudo, social e econômica”.

A nova missão do Direito, a missão de sua geração, seria, portanto, “assumir a tutela e a proteção dos fracos”. Citando João Mangabeira, Waldir Pires afirma: “Já não basta a igualdade perante a lei, ‘é preciso igual oportunidade; e igual oportunidade implica igual condição'”.

Waldir Pires defende a democracia social como a “humanização plena do Estado”.

Mesmo celebrando o centenário de Rui Barbosa, o jovem bacharel o faz de forma crítica. Ele não trata Rui como um totem, mas como um pensamento vivo. E questiona: qual seria a posição do Águia de Haia diante da “desagregação social” do século XX?

E responde, resgatando um Rui Barbosa que, no fim da vida, percebeu os limites do individualismo. Para demonstrar isso, Waldir Pires cita palavras de Rui, lembrando que o mestre defendeu ser preciso ‘ceder ao sôpro de socialização que agita o mundo’ e o ‘direito operário’ para ‘amparar a fraqueza dos necessitados contra a ganância dos opulentos’.”

Waldir Pires pede a Rui que o inspire a “amar devotadamente, como vós, a profissão que escolhemos, honrando-a, na defesa dos oprimidos, dos injustiçados, dos vencidos, contra a prepotência do arbítrio, da intolerância, da tirania”.

“Só assim, poderemos deixar as alturas desta Tribuna, no Templo venerando da Justiça, que a Bahia acaba de levantar, resgatando velha dívida, em honra e distinção à glória do vosso nome, dizendo-vos: MESTRE: repousai tranquilo. A geração que assiste às comemorações do vosso centenário não vos trairá jamais. Porque, mesmo do túmulo, sois vós quem a estimula. É o vosso espírito que presidirá os nossos atos. É a palavra evangélica de “Oração aos Moços” que nos conduzirá ao futuro. É a vossa paixão pelo Direito, pela Liberdade, pela Democracia e pela Justiça, que vos perpetuará, no mais recôndito das nossas almas, ajudando-nos a não capitular, reagindo, a não transigir, combatendo. Guia-nos, MESTRE, vós sois a nossa Luz”.

Hoje, transcorridos 76 anos, a “Oração Oficial” de Waldir Pires permanece como um documento de rara lucidez. Mais do que uma peça de oratória acadêmica, foi um manifesto político e ético que antecipou os rumos que o jovem bacharel trilharia ao longo de sua vida pública como jurista, secretário de Estado, professor, deputado estadual e federal, consultor-geral da República, ministro, governador de estado e defensor incansável das liberdades democráticas.

Esse compromisso com a justiça e a democracia não ficou restrito às palavras. Ao longo de sua vida pública, Waldir Pires se opôs à ditadura militar instaurada em 1964, denunciou os arbítrios do poder, defendeu a Constituição como norte a ser seguido (e obedecido) e atuou em defesa dos direitos sociais e da soberania nacional.

A “Oração Oficial” de 1949 não foi apenas um discurso, mas documento que definiu sua bússola moral, ética e a compreensão de que a democracia, sem justiça social, é apenas uma palavra incompleta, vazia, sem efeitos práticos.

Neste 5 de novembro de 2025, ao celebrarmos os 76 anos daquele momento histórico, reafirmamos a atualidade das palavras de Waldir Pires e a urgência de preservar seu legado.

No apêndice do livro Exílio – Testemunho de Vida, escrito por Yolanda Avena Pires, Darcy Ribeiro registra suas impressões sobre Waldir Pires em nove páginas (aqui estão apenas algumas linhas iniciais: “Conheci e convivi com alguns homens admiráveis de outras gerações, que foram meus santos e meus heróis. Na minha geração vejo poucos. Entre eles, Waldir. São qualidades eminentes de Waldir a retidão e a combatividade. Ambas severamente comprovadas numa vida inteira de muita luta. Como teria sido fácil e lucrativo para ele aderir e se entregar…Teria até justificativas: tantos filhos para criar! Waldir optou pela dureza. E o melhor é que fez isso e nisso persistiu, sempre com alegria e nenhum ressentimento”.

Em tempos de ameaças à democracia e de riscos de retrocessos sociais, a voz e os exemplos de Waldir Pires são referências para os democratas. Numa quadra histórica em que os interesses individuais ganharam espaços desmedidos na política, seu legado é um contraponto necessário a indicar que a persistência na construção de uma sociedade mais justa é o único caminho para o estabelecimento, de fato, da democracia no Brasil.

Que a trajetória e os valores éticos de Waldir Pires continuem a inspirar as novas gerações de juristas, políticos e cidadãos comprometidos com a democracia, a justiça, a liberdade e a dignidade humana.

P.S.: A grafia e a pontuação originais dos trechos do discurso de Waldir Pires, proferido em 5 de novembro de 1949 e citados neste artigo, foram mantidas para preservar sua integridade histórica.

Maurílio Lopes Fontes é bacharel em Marketing, Mestre em Marketing, Comunicação e Consultoria Política (Espanha). Diplomado em Gestão de Governo e Liderança Política (George Washington University – Estados Unidos).

Fotos: Arquivo Pessoal Maurílio Lopes Fontes

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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