Especialistas e representantes setoriais defendem pontos de vista no STF sobre direitos autorais na era do streaming

O Supremo Tribunal Federal (STF) ouviu nesta segunda-feira (27) expositores que apresentaram, em audiência pública, diversos pontos de vistas sobre a temática dos direitos autorais na era digital. A audiência foi convocada pelo ministro Dias Toffoli, relator do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1542420, que trata da matéria. A controvérsia tem repercussão geral (Tema 1.403), ou seja, a decisão a ser tomada pelo STF no julgamento de mérito deverá ser aplicada aos demais casos semelhantes na Justiça.

Representantes dos meios acadêmicos e de entidades do setor, além de especialistas em direito autoral, apresentaram argumentos sobre a exploração econômica de direitos de propriedade intelectual e o direito de fiscalização dessa exploração de obras inseridas em plataformas de streaming.

Ao encerrar o evento, o ministro destacou a relevância e a qualidade das exposições apresentadas, que, segundo ele, proporcionaram uma compreensão mais ampla e concreta sobre o tema. Segundo Toffoli, o debate reuniu contribuições valiosas que servirão para subsidiar o julgamento do processo.

Ele ressaltou ainda que a criatividade e a produção artística são expressões da soberania cultural brasileira e projetam o país no cenário internacional.

Contratos x meios digitais

O recurso foi movido por Roberto Carlos e pelos herdeiros de Erasmo Carlos contra a editora Fermata do Brasil. Eles pedem a revisão de contratos assinados entre 1964 e 1987, que previam apenas a exploração das músicas em formatos analógicos – como LPs, CDs e DVDs –, sem mencionar os meios digitais. A alegação é de violação contratual e falta de transparência no uso das obras em plataformas de streaming.

A Fermata, por sua vez, defende que a cessão dos direitos foi definitiva no momento da assinatura e continua válida mesmo com as mudanças tecnológicas. Sustenta que os contratos garantem à empresa o direito exclusivo de explorar comercialmente as músicas em qualquer formato, presente ou futuro.

Confira o resumo das exposições:

Pedro Marcos Barbosa, presidente da Comissão de Direitos Autorais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Rio de Janeiro (OAB-RJ), e professor
O advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) defendeu que há seis lados vinculados à propriedade intelectual: o autor, o titular da obra, o Estado, os consumidores, os rivais ou concorrentes e o meio cultural. “Essa relação poliédrica cumpre sua função social se estiver equilibrada entre todos esses atores econômicos”, afirmou. Ele destacou que o trabalho intelectual do artista é protegido pela Constituição, o que lhe garante uma espécie de mínimo existencial no exercício da profissão. “Esse criador, que não é um mero diletante – especialmente na era da Inteligência Artificial –, continua sendo muito sucateado e desrespeitado nas relações com os grandes grupos econômicos, onde quase nunca tem vez”, declarou.

Rodrigo Moraes Ferreira, procurador do Município de Salvador (BA), professor e doutor em direito
Para o professor da direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), “nada é mais farisaico do que dizer que compositores e editores musicais negociam em condições de igualdade e liberdade”. Ele sustentou que, na prática, os autores são a parte vulnerável dos contratos de adesão. Muitos compositores, especialmente no início da carreira, acabam assinando cessões definitivas de direitos autorais patrimoniais, em afronta a princípios constitucionais. Ferreira apresentou, ainda, cálculos demonstrando que artistas que firmam esses contratos ainda jovens podem permanecer vinculados por mais de 100 anos, uma distorção que não condiz com a realidade das relações contratuais.

Daniel Pessôa Campello Queiroz, advogado especialista em direito autoral e CEO da ORB Music
Queiroz afirmou que, no contexto da chamada 4ª Revolução Industrial, a principal transformação econômica foi o surgimento da “economia das plataformas”, que estabelece suas próprias regras de governança. No entanto, a falta de regulamentação específica para esses novos modelos fez com que os artistas ficassem um longo período sem receber remuneração adequada, até que as leis acompanhassem essas mudanças. Enquanto isso, segundo o advogado, a indústria fonográfica voltou a se tornar um negócio altamente lucrativo, chegando a dobrar seus ganhos em comparação à melhor fase do mercado físico. Ele defendeu uma reforma da lei geral de direito autoral e a criação da Agência Nacional de Música, nos moldes da Ancine.

Paulo Rosa, presidente da Pro-Música Brasil Produtores Fonográficos Associados (ProMúsica Brasil)
Segundo o expositor, a transição para o mercado digital provocou grandes mudanças nas receitas e na forma de remuneração de autores e artistas. Ele explicou que a lógica atual se baseia no acesso, e não mais na venda, e que as plataformas de streaming operam, em geral, com modelos sustentados por publicidade e assinaturas. Além disso, o mercado passou a se organizar em torno de faixas individuais, e não mais de álbuns completos. A lógica, porém, continua semelhante à da indústria física: antes, quem vendia mais ganhava mais; agora é quem tem mais. “Mas, no mundo do streaming, é preciso alcançar milhões de reproduções para obter uma remuneração significativa”, observou.

Erickson Marques, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP)
O magistrado explicou que o direito dos Estados Unidos – onde se concentra a maioria das plataformas de streaming – tem pouca tradição na proteção dos direitos morais do autor. “Lá, o aspecto econômico e patrimonial prevalece. Mas não podemos esquecer que, no Brasil, o regime é outro: nossos direitos autorais seguem o modelo europeu do direito de autor”, afirmou. Defendeu, por isso, a criação de um marco internacional que permita harmonizar esses diferentes sistemas jurídicos, de modo que os países onde estão sediados os serviços de streaming respeitem também culturas legais distintas.

Bérith Citro Lourenço Marques Santana, advogado empresarial
O especialista em direito empresarial destacou que a legislação atual, baseada na posse e no patrimonialismo do mundo físico, não se aplica mais ao contexto de acesso digital, como o das plataformas de streaming. Defendeu, portanto, a construção coletiva de um novo equilíbrio entre os interesses econômicos e os direitos existenciais dos criadores, com foco em transparência e dignidade humana, sobretudo quanto à forma como os artistas são remunerados e informados sobre o uso de suas obras.

Fernando José Gonçalves Acunha, advogado da Editora e Importadora Musical Fermata do Brasil Ltda.
Representante da parte recorrida no recurso, a advogado argumentou que o processo não trata das plataformas de streaming, mas da validade dos contratos antigos, protegidos pela legislação vigente na época de sua realização. Segundo o advogado, as editoras atuam em parceria com os autores, utilizando plataformas para consolidar e fiscalizar relatórios de execução musical, assegurando pagamentos corretos e maior controle sobre o uso das obras.

Antônio Carlos Morato, advogado, membro da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB/SP e professor da Universidade de São Paulo (USP)
O advogado sustentou que as normas de direito autoral têm natureza pública e devem equilibrar a autonomia contratual e a proteção das partes mais frágeis, reconhecendo a assimetria entre autores e editoras. Argumentou que, embora a segurança jurídica e a vinculação dos contratos sejam essenciais, essas relações precisam ser interpretadas à luz do interesse social, da boa-fé e da dignidade do autor como trabalhador.

Milton Lucídio Leão Barcellos, advogado e agente da Propriedade Industrial
O advogado e doutor em direito da propriedade intelectual defendeu que os contratos firmados antes da consolidação do streaming não abrangem automaticamente o uso das obras nessas plataformas, sendo necessária nova autorização expressa dos autores. Argumentou que os direitos de fiscalização e de remuneração justa são extensões naturais do autor e que o ordenamento jurídico deve reforçar a centralidade do criador e garantir meios efetivos de controle sobre a exploração econômica de suas obras em plataformas digitais.

Marcos Wachowicz, advogado e professor de direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
O professor ressaltou a necessidade de atualização legislativa e de mecanismos de fiscalização que garantam a proteção da autoria, a transparência e a justa remuneração na era digital. Segundo ele, o avanço tecnológico transformou a música em um produto de dados, deslocando o foco do autor para o modelo de negócio das plataformas. Disse ainda que a atual Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) não contempla o contexto digital, e, portanto, é insuficiente para lidar com os desafios trazidos pelas plataformas de streaming.

Simone Lahorgue Nunes, advogada, professora e doutora em direito
Para a professora de direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV/RJ), a Lei de Direitos Autorais brasileira é sólida e adequada ao contexto digital. Segundo ela, os problemas de remuneração dos artistas não se devem a falhas legais, mas à má elaboração e execução dos contratos. A expositora defendeu a importância de distinguir o direito autoral da propriedade industrial: um é direito fundamental ligado à expressão da personalidade e à soberania cultural do país, enquanto o outro tem natureza econômica e funcional.

Deborah Sztajnberg, integrante da Comissão de Direito Autoral do Instituto dos Advogados Brasileiros, professora e doutora em direito
A advogada disse que é necessária uma reflexão sobre a justiça de manter a validade de contrato elaborado para uma época em que se vendiam cópias físicas, diante do momento atual, em que o modelo digital estabelece outra lógica. Entre outros pontos, elaconsidera injusto que um autor não tenha ciência ou possa dar anuência sobre o que está sendo feito com sua obra. Segundo ela, o caminho para a equidade passa pela justa remuneração, o que não ocorre hoje devido à falta de transparência e fiscalização.

Karin Grau Kuntz, pesquisadora e doutora em direito
A expositora explicou que as plataformas de streaming constituem um modelo diferente de exploração econômica. Ela destacou que o cerne dessas plataformas não é apenas disponibilizar música, mas obter a atenção dos consumidores, possibilitando a coleta de dados e alimentando um outro modelo de negócio, alheio ao que foi previsto nos contratos da época analógica. Neste caso, afirmou, o autor passa a atuar como insumo para um segundo negócio, que é a extração de valor informacional, o que justifica a revisão dos contratos, pois se perdeu o objeto originalmente contratado.

Maria Rita Braga de Siqueira Neiva, professora e doutora em direito
A pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, destacou que a transferência do direito de negociar valores com as plataformas para uma entidade de gestão coletiva – que no Brasil é o Ecad – retira do autor o direito exclusivo de autorizar e negociar diretamente a execução de suas obras. A seu ver, o Ecad representa um custo transacional adicional, com diversos fatores que ingressam no fluxo remuneratório até que os valores cheguem efetivamente aos autores e compositores. Com isso, os valores chegam de forma diluída, em razão de um segundo agente nesse processo.

Carlos Ragazzo, advogado, professor e doutor em direito
O professor da FGV/RJ sustentou que a relação intrínseca entre autores e editores não se alterou: a alteração se deu apenas do ponto de vista econômico, em relação às plataformas digitais. A seu ver, a participação das editoras na negociação dos direitos autorais no modelo de streaming é mais benéfica para os autores, pois o poder de barganha nas negociações é aumentado, tornando mais eficiente esse modelo do que as negociações diretas entre autores e plataformas.

Grace Mendonça, representante da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert)
A advogada destacou a necessidade de que os contratos firmados sejam respeitados. Ela afirmou que a digitalização do conteúdo não altera a natureza do contrato de cessão de direitos nem cria direito autônomo. Ressaltou, ainda, que as cessões de direitos garantem a segurança jurídica para a continuidade dos investimentos necessários à produção, à difusão e à comercialização das obras em diversas plataformas, como TV aberta, TV por assinatura, cinema ou plataformas digitais.

Gustavo Binenbojm, representante da União Brasileira de Editoras de Música (Ubem)
Segundo o advogado, o rompimento abrupto de contratos de cessão de direitos anteriores a 1998 seria uma violação à cláusula constitucional do devido processo legal. Em seu entendimento, embora haja necessidade de correção gradual de falhas ou defeitos do modelo atual, isso deve ocorrer por meio de discussões no Congresso Nacional ou por regulamentação pelo Executivo. No seu ponto de vista, não é possível desmontar um modelo de proteção a direitos autorais que levou décadas para ser implementado, a partir de uma inconformidade diante de contratos válidos, mas que talvez não remunerem de maneira satisfatória aqueles que desejariam receber mais.

Cláudio Lins de Vasconcelos, representante da Irmãos Vitale Editores Ltda.
O advogado defendeu que a segurança jurídica dos contratos de direitos autorais é essencial para a sustentabilidade da indústria da música, a qual integra o setor criativo, responsável por 3,5% do PIB brasileiro e no qual o país já é competitivo globalmente. Ele afirmou que a circulação, hoje digital e internacional, é controlada por grandes plataformas estrangeiras, o que exige coesão entre autores e editoras para manter escala e poder de negociação. A seu ver, fragilizar os contratos firmados traria risco sistêmico ao repertório brasileiro, reduzindo investimentos e dificultando a difusão das obras em um mercado saturado.

Guilherme Coutinho Silva, advogado, doutor em direito e pesquisador
Para o expositor, contratos firmados por Roberto Carlos e Erasmo Carlos eram de edição musical, não de cessão integral, conforme previsto na legislação da época. Ressaltou que esses acordos foram assinados quando os artistas tinham apenas 23 anos e pouca orientação jurídica, em um contexto em que a assinatura com grandes editoras era praticamente a única forma de inserção no mercado. Criticou a transferência de catálogos entre empresas sem anuência dos autores, assim como a ausência de participação dos compositores nos ganhos dessas negociações. Defendeu que, diante da mudança radical no mercado e da natureza dúbia dos instrumentos firmados, deve prevalecer a interpretação que proteja os autores.

Mauro Augusto Ponzoni Falsetti, representante da Digital Media Association (DIMA)
Apresentando a visão das principais plataformas de streaming, Falsetti afirmou que a digitalização ampliou o acesso à música, reduziu a pirataria e permitiu que muito mais artistas e compositores recebessem remuneração. Segundo ele, os serviços de streaming pagam direitos de forma estruturada e rastreável, e o crescimento das receitas do setor no Brasil e no mundo demonstra que esse modelo beneficia toda a cadeia. Ressaltou que as plataformas não contratam diretamente os autores, mas gravadoras e entidades de gestão coletiva, cabendo a essas o repasse adequado. Defendeu que a segurança jurídica é fundamental para a continuidade dos investimentos, a estabilidade dos licenciamentos e a preservação do ambiente de negócios que expandiu a presença da música brasileira e multiplicou criadores ativos no mercado.

Leticia Provedel, advogada do cantor, compositor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil
A advogada argumentou que os contratos firmados por Roberto Carlos na década de 1960 refletiam um modelo de negócio totalmente diferente, baseado na influência das editoras em rádios e TVs, enquanto hoje a distribuição digital permite que artistas administrem diretamente seus direitos e suas receitas. Esses contratos não contemplavam o meio digital e, pela lei, não é possível ceder direitos sobre modalidades inexistentes à época, sendo indispensável autorização prévia e expressa para novas formas de exploração. Disse que o caso envolve direitos fundamentais do autor e não pode ser tratado como uma simples compra e venda, reforçando que a realidade tecnológica atual impõe a revisão das bases contratuais.

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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