‘Se a eleição é um ritual de mudança, é uma devassidão ter uma disputa com os mesmos atores’ – Roberto DaMatta

Conforme sabemos, os rios só têm duas margens. Uma terceira é obra de ficção e, como tal, tem realidade quando se lê Guimarães Rosa, deixando-se englobar pela sua criação. Nela, um chefe de família entra numa canoa e decide viver no meio do rio, criando uma margem marginal – um terceiro lado onde havia somente dois.

Nós, humanos, sempre esquecemos de que podemos fazer tudo com a nossa conhecida incoerência, nome usualmente empregado para esses voos da imaginação que preenchem os buracos entre o gostar e o porquê de se gostar. E a vida social tem muitas margens. Na família, só temos um par: pai e mãe e, na vida, temos homens e mulheres e vivos e mortos. Mas a magia da dinâmica social supera dualidades estanques e inventa transposições. Assim, todos os dualismos têm mediações ou canoas-pontes que transcendem a polarização absoluta.

Não sou o único a exprimir minha decepção diante de um processo eleitoral congelado justamente porque ele é a consequência de um sistema político recheado de contradições, de modo que o mudar repete o passado. Um ponto comum entre as pessoas que formam o polo é que ambos traíram o papel de servidor maior do País como presidentes.

Por que, indaga-se, não há uma terceira margem e por que essas margens se repetem impedindo o fluir do rio da história?

Só me ocorre uma resposta: o nosso gosto pela “política” como um obstáculo para resolver os problemas tradicionais do sistema nacional. A mais absoluta e paradoxal ausência de impessoalidade nas políticas públicas que, exceto pelo Plano Real, mal disfarçam um intolerável filhotismo caseiro ou partidário. Se a esfera do político demorou alguns séculos para ser ponte entre modos de vida inevitavelmente desiguais, no Brasil ela tem servido como uma canoa furada para manter as diferenças entre todas as margens.

Transformou-se num lugar majoritariamente infectado pelo vírus da malandragem e pela imaginação perversa dos desonestos. Ela deixou de ser uma esfera com um alto potencial de nobreza moral para se tornar uma caverna onde convivem, debaixo de uma etiqueta de aparente civilidade, alguns heróis e um punhado de malandros. Deste modo ela decepciona, porque mostra como comédia e tragédia são margens fáceis de ligar e confundir.

Pois tirando as devidas exceções, o que o cidadão brasileiro tem é que as margens entre os três pilares da democracia se confundem e essa balbúrdia ajuda os autoritários.

Se a eleição é um ritual de mudança crítico nas democracias, é uma devassidão ter uma disputa com os mesmos atores que tanto abusaram da vida pública brasileira. Votar no menos ruim é um jeitinho para continuar o mesmo jogo.

 

Fonte: O Estado de São Paulo

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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