Sem o cortejo do Dois de Julho, políticos perdem teste de popularidade

Frequentemente descrito como um medidor de popularidade para autoridades baianas ou um evento de pré-campanha em anos eleitorais, o cortejo do Dois de Julho sempre teve uma dimensão política, no sentido mais amplo, pontuam estudiosos do desfile.

“Tem uma dimensão de conflito que sempre existiu, não só entre elite e povo, mas entre os diversos interesses da festa. Até mesmo a idéia de acabar com a festa, ou de tirar o Caboclo (entre 1923 e 1943)”, afirma Fábio Baldaia, que se debruçou sobre o cortejo na sua tese de doutorado em Ciências Sociais.

“Eu tenho impressão que sempre foi uma festa com caráter político, mas obviamente a qualidade desse caráter se modifica no decorrer dos séculos”, explica o historiador Sérgio Guerra, estudioso da guerra da Independência no seu mestrado e doutorado. “Não é uma data linear. Foi marcada por altos e baixos na história, com apoios e recuos dos poderes públicos. Em alguns momentos, só foi festejada em freguesias, por populares”, acrescenta o historiador Danilo Uzêda.

Este ano, em função da pandemia do coronavírus, o tradicional desfile não acontecerá. O governador Rui Costa (PT) e o prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), farão o hasteamento das bandeiras no Largo da Lapinha e a deposição de flores aos heróis da Independência no monumento do General Labatut. Pela primeira vez, os pré-candidatos à prefeitura não poderão participar de um evento que já se consolidou no calendário eleitoral.

Apesar da perda da relevância do chamado corpo a corpo nas campanhas eleitorais, o cientista político Paulo Fábio Dantas opina que a pandemia, ao impedir a realização da festa, impossibilita “um momento de comunicação importante entre políticos que a valorizam e a sociedade”.

“Ela fará falta, neste 2020, principalmente às campanhas para prefeito, que perdem a ocasião que geralmente marca a passagem da pré-campanha à campanha eleitoral propriamente dita; em que elites partidárias cedem o protagonismo aos candidatos”, diz Dantas.

Chefes dos poderes Executivo e Legislativo no hasteamento das bandeiras no início do desfile
Chefes dos poderes Executivo e Legislativo no hasteamento das bandeiras no início do desfile

Disputa acirrada

Nos últimos anos, os grupos liderados por PT e DEM, as duas maiores forças da política baiana, têm medido forças durante o trajeto, em muitas vezes com princípios de tumulto. Em 2014, por exemplo, a Polícia Militar precisou intervir para evitar uma confusão maior. O então prefeito de Santo Amaro, Ricardo Machado (PT), chegou a acusar Pablo Barrozo, atual secretário de Cultura e Turismo de Salvador, de iniciar o tumulto. Na época ex-assessor de Neto, Barrozo negou as acusações.

Esta atual configuração da festa, como arena de luta entre diferentes grupos político-partidários, se constrói ao longo dos anos 1980, após a redemocratização, destaca Uzêda. Tal caráter é reforçado com a construção da ideia da campanha eleitoral moderna, reforça Sergio Guerra. “Quando as eleições passam a ter mais recurso, produção de publicidade, isso vai ganhando outro patamar”, diz o historiador.

Em 1994, por exemplo, houve a famosa briga pública entre a então prefeita Lídice da Mata e Antônio Carlos Magalhães, que havia deixado o governo do Estado há poucos meses. Lídice relatou que ACM a ofendeu e a mandou sair da frente. Já o ex-senador menosprezava o episódio. Lídice acusava ACM de boicotá-la, não repassando qualquer recurso à administração municipal.

No desfile do mesmo ano, o grupo ligado a ACM armou uma operação de guerra para receber Lula, então candidato do PT à Presidência da República, com vaias. O petista, entretanto, acabou evitando o confronto, ao realizar a caminhada uma hora depois do cortejo original.

A festa do Dois de Julho já recebeu presidenciáveis em muitas outras oportunidades, até mesmo recentemente. Em 2018, Guilherme Boulos (PSOL) e Ciro Gomes (PDT) vieram a Salvador para o evento. Com o pé machucado, o pedetista só participou, entretanto, do começo do cortejo.

Identificado com a festa

Um dos políticos mais identificados com o Dois de Julho, ACM costumava ser bastante assediado por simpatizantes durante a caminhada. Não é raro ver, até os dias de hoje, algumas pessoas que saúdam a passagem do prefeito com menções ao ex-senador ou até fotos do político em suas casas.

Um dos políticos mais identificados com a festa, ACM era bastante assediado
Um dos políticos mais identificados com a festa, ACM era bastante assediado

Apesar do caráter político atual da festa ter se desenhado ao longo da década de 80, Dantas defende que a ligação imediata com a competição eleitoral passou a ser mais visível a partir de 1978. “Naquela ocasião, o MDB, por instigação da ala Jovem do partido e de parlamentares do chamado ‘grupo autêntico’, compareceu, de surpresa, posicionando-se ao final do préstito oficial, com dezenas de militantes e lideranças”, diz.

À frente do grupo do MDB estava o seu então candidato ao Senado às eleições daquele ano, Rômulo Almeida. “Naquele ano de 1978 e até o fim da ditadura, a repressão policial sempre foi mobilizada para repelir essa participação, mas a reunião feliz de festa e política prevaleceu”, lembra.

A presença de políticos no cortejo é bastante antiga. Há registros de autoridades no desfile desde o século 19, informa Baldaia. “Os registros mostram que, desde o século 19, tem deputado, presidente de província, até numa tentativa de moralizar a festa. Havia uma visão de que era uma festa muito esculhambada, sempre houve esforço para ‘normatizar’ a festa. […] A elite de Salvador queria ser europeia, queria que a expressão pública fosse parecida com o do 14 de julho na França”, compara Fábio Baldaia.

Ainda sobre as origens do cortejo, Sergio Guerra reforça que o Estado imperial “entra para ter um certo controle da festa”. Já Uzêda pontua que o Dois de Julho sempre foi uma festa que teve “a política regional marcada em seu cortejo, como expressão da política oligarca baiana”.

Teste das ruas

A tradição é tamanha que, para um político baiano, não ir ao desfile “era uma coisa indigna”, segundo Baldaia. “Não estar no Dois de Julho é não estar sujeito à vaia. Você tem que ir, nem que seja para tomar uma garrafada”, completa.

 

Lídice da Mata protagonizou um embate memorável com ACM no evento cívico
Lídice da Mata protagonizou um embate memorável com ACM no evento cívico

 

Foi praticamente o que aconteceu com o então governador Jaques Wagner (PT), em 2012. Enfrentando uma extensa greve de professores, Wagner foi vaiado praticamente do começo ao fim do cortejo. Um homem chegou a arremessar um mastro em sua direção. O objeto atingiu a cabeça do petista, sem gravidade.

Sucessor de Wagner, Rui já quebrou a tradição de não faltar ao desfile. No ano passado, o governador estava em viagem de trabalho à Espanha no período. Na ocasião, foi criticado por Neto. “Na minha opinião, não haveria nenhum evento mais importante do calendário para um governador ou para um prefeito do que o Dois de Julho, que é a comemoração da independência do estado. (…) É de estranhar o governador ter optado por passar o Dois de Julho na Europa e não na Bahia, ao lado do nosso povo”, declarou o prefeito.

 

Fonte: A Tarde

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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