Da garagem à China: Google faz 20 anos e aposta na dominação dos robôs

Você entra em um carro autônomo e saca seu smartphone. Abre um aplicativo para olhar uma mistura de anúncios e notícias relevantes. No meio do caminho, resolve pedir para sua assistente virtual reservar um hotel. Chegando no quarto recém agendado, acessa um relatório de doenças que podem acometê-lo nas próximas décadas. Pede para o Nest, aparelho que controla residências, que apague as luzes do cômodo – e viaja para seu inconsciente ao som de uma música customizada para seu relaxamento.

Para o Google, essa história está a poucos anos de distância por conta de uma tecnologia que permeia todos os passos mencionados: a inteligência artificial. A gigante de tecnologia faz seu 20º aniversário hoje e muitos imaginam de onde virá sua próxima sacada. A inovação poderá estar em qualquer uma das suas centenas de verticais, inscritas em mercados gigantes – anúncios, computação em nuvem, mídia, transporte ou saúde, para citar poucos exemplos. A única certeza é a de que os robôs terão um papel fundamental.

O recado foi dado na última conferência para desenvolvedores, a Google I/O. O encontro foi totalmente dedicado à capacidade de algoritmos emularem comportamentos humanos (e serem mais eficientes neles do que nós mesmos). Nele, uma assistente virtual ligou para uma pizzaria com uma linguagem humana até demais, esbarrando no uncanny valley – “vale da estranheza” no qual os robôs são tão parecidos conosco que nos provocam repulsa.

Essa ojeriza se combina a uma reclamação antiga de personalidades como o ex-oficial da inteligência americano Edward Snowden sobre o uso indevido de nossas informações para enriquecer a eficácia dos algoritmos e impulsionar anúncios. Contra os detratores, o CEO do Google Sundar Pichai ressaltou a utilidade da inteligência artificial. “Fazer a informação mais útil, acessível e benéfica para a sociedade. O Google consegue se aproximar à sua eterna missão com mais vigor por causa da inteligência artificial”, afirmou no Google I/O.

Pichai ainda não sabia que as negociações do Google com a politicamente autoritária China reforçariam tais protestos e gerariam discussões sobre se a gigante estaria, de fato, cumprindo esse propósito democrático. Equilibrar sua missão com a demanda pela receita dos anunciantes em mundo cada vez mais preocupado é o desafio da gigante daqui para a frente – e a solução passa pelo desenvolvimento de tecnologias de tratamento de dados que equilibrem eficácia e privacidade.

De nerds em um dormitório a bilionários da tecnologia

Não há uma definição melhor para Sergey Brin e Larry Page, então estudantes na Universidade de Stanford, do que nerds. O ano era 1995. Enquanto seus colegas começavam a fazer dinheiro com negócios na internet, Page havia sido atraído para o universo online por conta de suas propriedades matemáticas.

Em um estudo, o engenheiro concluiu que o sistema de links funciona como as citações acadêmicas. Em ambos os casos, as menções são pontes para conectar diferentes páginas, como linhas que ligam os nós em uma rede. A pesquisa de Page se tornaria o projeto BackRub, que tinha o objetivo de contar e qualificar cada link na internet. Quanto mais citado e quão mais importante fosse o citador, mais valioso um link seria (um algoritmo que se chamaria PageRank).

A complexidade de analisar os então 10 milhões de documentos presentes na web atraiu seu veterano, o matemático Brin. Originalmente russo, Brin chegou aos Estados Unidos aos seis anos de idade e foi considerado um prodígio da matemática já no ensino primário.

O BackRub era um mecanismo de busca de páginas que superou concorrentes como Altavista e Excite e, em 1996, lançou sua primeira versão sob o nome Google. Ele remete ao “googol”, termo que representa o número 1 seguido de 100 zeros, para representar a imensidão que a internet poderia se tornar. E, quanto mais links fossem criados, mais efetivo seria o buscador. Brin e Page começaram a pedir equipamentos emprestados e montaram um escritório no dormitório do engenheiro e a empresa chegou a consumir metade da banda larga da Universidade de Stanford.

Brin e Page eventualmente transformaram esse projeto acadêmico em uma empresa. Em 1998, a Google Inc. foi oficialmente formada com um cheque de 100 mil dólares de um investidores e mudou-se do dormitório para uma garagem com computadores velhos, uma mesa de pingue-pongue e um tapete azul brilhante. Para não esquecerem sua origem, os dois nerds publicaram no mesmo ano um artigo científico sobre o PageRank.

Apenas seis anos depois, em 2004, o Google faria seu IPO na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE). Hoje, possui mais de 60 mil funcionários espalhados por 50 países. São centenas de produtos e bilhões de usuários. A fortuna de Sergey Brin está estimada em mais de 53 bilhões de dólares, enquanto a de Larry Page é um pouco maior, acumulando mais de 54 bilhões de dólares.

Larry Page e Sergey Brin na garagem que sediava o Google

Larry Page e Sergey Brin na garagem que sediava o Google (Google/Reprodução)

Google, robô

Aqueles Brin e Page que empreendiam em uma garagem não poderiam imaginar o que estaria por vir. O Google Inc. trocou de nome, para Alphabet, e hoje abriga diversas iniciativas além do seu buscador. Dentro do guarda-chuva do Google há serviços como o site de vídeos YouTube, reconhecida como uma das melhores aquisições do Google; o sistema operacional Android; o navegador Google Chrome; os serviços de computação em nuvem para indivíduos e empresas, no pacote Google Suite; e o ajudante para controlar residências Google Nest.

Fora do Google, alguns exemplos são a empresa de carros autônomos Waymo, as subsidiárias de saúde Calico e Verily e a misteriosa X, empresa de projetos disruptivos. O resumo da organização da Alphabet, elaborado pela empresa de análise de dados CB Insights, pode ser visto abaixo:

Estrutura organizacional da Alphabet, empresa-mãe do Google

Estrutura organizacional da Alphabet, empresa-mãe do Google (CB Insights/Reprodução)

A expansão de verticais refletiu-se em maiores custos. No grupo das capitalizadas e tecnológicas Apple, Amazon, Facebook, Google a Microsoft (o famoso FAMGA), o Google é a segunda empresa que mais gastou em pesquisa e desenvolvimento em termos absolutos (16,6 bilhões de dólares, perdendo para a Amazon) e em percentual sobre as vendas (15%, perdendo para o Facebook) em 2017. Mesmo assim, boa parte das receitas da Alphabet ainda vêm dos velhos anúncios embutidos nas buscas – eles foram responsáveis por 90% das receitas nos últimos três meses, de acordo com o The Guardian.

Nos últimos dez anos, as pesquisas passaram de apenas palavras para vídeos do YouTube ou para imagens espalhadas pela loja de aplicativos para smartphones Google Play. Como desafio, crescentes regulações de países quanto ao uso de informações aumentaram o custo de aquisição de tráfego dos usuários, maior fonte de despesas para o negócio mais lucrativo da Alphabet. Outro obstáculo é que a lista de competidores pelos anúncios mais eficientes incluem Apple (na loja de aplicativos Apple Store), Amazon (em seu e-commerce) e Microsoft (no buscador Bing, opção padrão em computadores com o navegador Internet Explorer instalado).

Para se destacar, o Google anunciou um serviço de anúncios desenvolvido especialmente para conquistar o mercado de 125 milhões de micro, pequenos e médios negócios formais no mundo, sendo o Brasil uma região de especial interesse. Baratear o custo dos anúncios a ponto de microempreendedores poderem acessá-lo só foi possível por meio do desenvolvimento de uma inteligência artificial que escolhe os anúncios e melhora sua eficiência a cada novo dado inserido pelos donos do negócio – um conceito conhecido como machine learning. Não é por nada que a gigante aposta, com força, no potencial da AI.

O Google olha financeiramente para essa tecnologia desde 2011, quando fechou suas primeiras aquisições de startups especializadas em inteligência artificial. De lá para cá, foram 14 compras, segundo o CB Insights. A divisão Google Research foi renomeada para Google AI, em um movimento simbólico.

Desde 2016, o Google é a empresa do FAMGA que mais pediu e conseguiu patentes no setor. No mesmo ano, Pichai anunciou que o mundo mudou de mobile-first para AI-first. Pouco depois da declaração do CEO, o Google lançou dois fundos de investimento focados em AI, chamados Gradient Ventures e Google Assistant Investment Program. Em 2018, procurou startups de São Paulo que quisessem incluir inteligência artificial e machine learning pelo programa Google Launchpad Accelerator.

Olhando para as patentes, é possível prever os próximos passos para a gigante de 20 anos de idade. Um destaque é o deep learning, uma evolução da tecnologia de machine learning. Algoritmos dotados de deep learning precisam de menos interferência de engenheiros para serem refinados, corrigindo suas próprias previsões. O termo começou a ser mencionado nos documentos do Google em 2015 e já é a terceira expressão mais mencionada nas patentes, atrás dos genéricos “devices eletrônicos” e “itens de conteúdo.”

O potencial (e o perigo) da expansão

Um maior desenvolvimento da inteligência artificial cria a oportunidade de escalar as soluções do Google para ainda mais usuários. Um mercado quente para a gigante é o de países emergentes economicamente e com acesso cada vez maior à internet. É o caso do Brasil, mas também de países como Índia, Indonésia e China. Todos eles são oportunidades de inserir anúncios e buscas em serviços usados por milhões de usuários e de oferecer soluções de computação em nuvem para as companhias nacionais.

Seguindo a estratégia, o Google possui um laboratório de pesquisas sobre inteligência artificial em Beijing desde o ano passado. Isso porque em nenhum outro país o potencial (e o perigo) são tão marcantes quanto na politicamente autoritária China. A gigante já tentou antes, lançando em 2006 um buscador oficial com links moderados pelo governo chinês, chamado Google.cn. Diante das críticas, o Google afirmou na época que, embora remover resultados de pesquisa seja inconsistente com sua missão, deixar de prover qualquer tipo de informação seria ainda mais contrário aos princípios da empresa.

Mesmo com a boa intenção, hackers chineses comprometeram contas de dissidentes políticos no Gmail e em outras 20 empresas do ocidente e levaram a gigante de tecnologia a redirecionar o Google.cn para uma versão sem censura, baseada em Hong Kong, em 2010. O site de pesquisas está bloqueado na China desde então. Mas o mercado chinês se tornou ainda mais difícil de ignorar nos últimos oito anos. O Android, sistema operacional criado pelo Google, ironicamente é usado pela maioria dos mais de 770 milhões de chineses conectados.

Diante da oportunidade, a empresa colocou 550 milhões de dólares no JD.com, o segundo maior e-commerce chinês, e outros 76 milhões de dólares na empresa de games Chushou. Agora, o Google também avalia voltar com seu buscador censurado, por meio de um projeto chamado Dragonfly. Segundo o The Intercept, temas como democracia, direitos humanos, religião e protestos pacíficos estariam na lista de conteúdos filtrados. A notícia, assim como em 2006, gerou protestos até de funcionários e ex-funcionários. “Eles estarão servindo o governo chinês”, afirmou à CNN Lokman Tsui, ex-diretor de liberdade de expressão do Google na Ásia. “O Google pode ter de entregar os dados que coleta”. Cerca de 1.400 funcionários assinaram uma carta contra o Dragonfly e, nesta semana, o ex-funcionário Jack Poulson revelou detalhes ao Senado americano, como a conexão entre buscas e os números de celular dos usuários.

Não é só na China que a gigante de tecnologia passa por apuros em emplacar sua busca dotada de maior inteligência artificial. Neste ano, a entrada na nova Regulação Geral de Proteção de Dados (GDPR, na sigla original) na Europa quase fez o Google pagar uma multa de 4,88 bilhões de euros e acendeu o sinal vermelho de que protestos similares poderiam acontecer em países que se inspirassem na GDPR – como o próprio Brasil. O poder do Google já resultou em uma multa recorde de 4,3 bilhões de euros por conta de sua condição de monopólio em buscas e lojas de aplicativos para smartphones. No ano passado, a gigante já havia sido multada em 2,4 bilhões de euros por favorecer seus próprios serviços nas buscas.

Com ou sem multas, os recentes e futuros passos da gigante de tecnologia mostram que Brin e Page colocarão cada vez mais robôs na rotina de quase todos os cidadãos do planeta, estejam eles em uma democracia ou não. Os algoritmos serão sua companhia ao acordar, ir ao trabalho, acessar seu computador e seu celular, voltar para casa e cair no sono. Se a criação de robôs bem mais desenvolvidos do que os que ranqueavam links em Stanford no ano de 1995 será boa ou ruim para a sociedade, dependerá do investimento em desenvolvimento associado à segurança dos dados – e da rememoração dos propósitos de um engenheiro e de um matemático.

 

Fonte: EXAME

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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