67,7% dos presos por tráfico de maconha tinham menos de 100 gramas da droga

Em uma manhã ensolarada e aparentemente normal de domingo, Paulo (o nome foi mudado a pedido do entrevistado), então com 19 anos, aproveitava o dia de descanso com um amigo em frente à Represa Guarapiranga, zona sul paulistana, entre um trago e outro de um cigarro de maconha que compartilhavam.

Os amigos resolveram dar uma volta de moto, “sentir o vento no rosto”. Subitamente, uma viatura da Rota, grupo de elite da Polícia Militar, cruzou o caminho dos jovens – parte da média de 1,5 milhão de brasileiros que diariamente consomem a droga. Os militares encontraram um tablete de 23 gramas da erva com a dupla e, em poucas horas, os estudantes viram suas tranquilas vidas se transformarem em um inferno de quase meio ano por acusação de tráfico de drogas e associação ao tráfico.

Casos como os de Paulo fazem parte da tônica da repressão às drogas aplicada atualmente no Brasil. De acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz com dados próprios e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), mais de 67,7% dos encarcerados por tráfico de maconha nas prisões do País foram flagrados com posse de menos de 100 gramas da droga, sendo 14% deles com quantidade inferior a 10 gramas – algo em torno de dez cigarros. Aliado aos dados dos encarcerados também por tráfico de cocaína – 77,6% com menos de 100 gramas –, 62,17% dos traficantes presos no País exerciam atividade remunerada na ocasião do flagrante, 94,3% não pertenciam a organizações criminosas e 97% nem sequer portava algum tipo de arma. Ou seja, eram ou microtraficantes ou usuários.

Os dados foram reunidos pelo instituto para iniciar uma nova campanha com o objetivo de tirar essas pessoas da cadeia, propondo a aplicação de penas alternativas. Batizada de “Eu Acredito no Caminho de Volta”, ela foi lançada para sensibilizar as autoridades e a sociedade a respeito da falência das ações anti-drogas praticadas no Brasil, especialmente após a sanção, em 2006, da Lei 11.343, segundo a qual usuários passariam a ser punidos apenas com penas educativas e não mais com prisão.

Inspirada em outras leis semelhantes em vigor em países como Portugal e Espanha, a norma brasileira tem como principal erro o fato de simplesmente não especificar o que diferencia o usuário do traficante, dizem os especialistas. Em território português, por exemplo, quem for flagrado com até 25 gramas de maconha não é considerado criminoso; só acima dessa quantidade é que pode ser levado à esfera criminal. No Brasil, no entanto, não existe tal definição: tudo depende dos antecedentes do flagrado, do local da apreensão e da própria interpretação de delegados e magistrados em relação a toda a situação.

“Para o objetivo para o qual foi aplicada a lei fracassou, acabou funcionando no sentido oposto, de prender mais”, analisa o jurista Luiz Flávio Gomes, doutor em Direito Criminal pela Universidade Complutense de Madri, na Espanha. “A lei deu margem a muitos subjetivismos, como de que forma se pode distinguir usuário de traficante. Os oito critérios atualmente usados para se fazer a distinção dão margem para uma série de interpretações que dependem unicamente do delegado e do juiz – e isso é um erro a ser corrigido com urgência.”

Ao mesmo tempo em que teoricamente tirou o usuário da esfera criminal, a lei também impôs normas mais duras a traficantes, classificados como autores de crime hediondo e inafiançável com penas que vão de 5 a 15 anos de cadeia, levando ao surgimento de outro problema: o aumento de prisões dos chamados “microtraficantes”. Estes são meros comerciantes de pequenas quantidades de drogas com influência no tráfico inexistente, pois atuam somente na linha de frente, seja na venda para amigos seja no comércio em bocas de fumo.

Assim, se em 2006 os considerados traficantes compunham 14% dos condenados no sistema prisional (47,5 mil pessoas), em 2012 esse número passou para 25% (132 mil pessoas) – em um período em que a população carcerária praticamente dobrou. Para efeito de comparação, apenas 11% dos encarcerados no País é de condenados por homicídio e sequestro.

“Estamos mandando usuários e microtraficantes para a cadeia, não os verdadeiros peixões do tráfico. E isso é uma situação muito séria, porque jogamos esses jovens, 75% deles com idades entre 18 e 29 anos e na maioria negros ou pardos, para uma verdadeira escola do crime, acabando com suas oportunidades futuras”, diz Bruno Langeani, coordenador de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz.

Para o grupo, é necessário iniciar uma discussão mais qualificada em relação ao problema, da mesma forma, por exemplo, como é feito na medicina, em que doenças diferentes demandam aplicação de remédios diferentes. Langeani cita o fato de o Brasil possuir formas mais eficientes e baratas para se punir no País, contando inclusive com a estrutura de 20 varas especializadas na aplicação de penas alternativas. “Desta forma, vale jogar na cadeia um microtraficante ao lado de pessoas que cometeram estupro, sequestro, assassinato? Isso é realmente bom para a sociedade? Para nós, a resposta é não”, afirma ele.

Traumas na “universidade”
No dia da abordagem policial – que, segundo sua versão, “durou quatro horas de tortura, com direito a tapas na cara dos PMs e a uma série de ameaças do momento do flagrante até a chegada à delegacia” –, Paulo foi parar no 43º DP, em Cidade Ademar, distrito no extremo sul paulistano. Foram 15 dias no local, onde se deparou com alguns de seus piores pesadelos: falta de lugar para dormir, “comida degradante e indigesta” e um sem número de ratos e baratas dividindo uma cela de 3×4 metros com 45 acusados dos mais diversos crimes, alguns deles doentes sem tratamento, com tuberculose.

Assim, chegou a ser um alívio para ele a transferência ao Centro de Detenção Provisória Chácara Belém II, na zona leste paulistana. No entanto, logo ele descobriria que pior do que as condições do encarceramento seria a própria convivência com criminosos que levou o sistema prisional brasileiro a ser apelidado por especialistas como “universidade do crime”.

“A pessoa no comando, o chamado ‘piloto’, quando queria comunicar algo, convocava todos. Era aterrorizante, porque sempre alguém apanhava, saía jurado de morte. Além disso, eu era um alvo fácil, pois não me encaixava no perfil violento e não me envolvia nos negócios dos bandidos”, relembra Paulo.

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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