Um gênio na burocracia – Daniel Martins Barros

A humanidade troca de habilidades ao longo do tempo. Com a escrita aprendemos a registrar e resgatar informações, diminuindo muito nossa capacidade de memorizar. As calculadoras diminuem a destreza para contas mentais, mas aumenta o alcance dos cálculos. É assim mesmo, habilidades nascem e morrem no transcorrer da história. Uma das capacidades humanas que vem caindo a olhos vistos é a de lidar com o tédio, à medida que os estímulos à nossa volta se multiplicam – não é preciso mais ficar entediado, basta olhar em volta. Paradoxalmente, contudo, não conseguimos fazer uma troca adequada dessa vez, porque cérebro humano não dá conta de gerenciar tanta informação. Ficamos perdidos e angustiados.

Só mesmo um gênio do calibre de David Foster Wallace para construir um romance em torno de um núcleo de personagens que passam os dias mergulhados em informação e ao mesmo tempo sob risco contínuo de um tédio mortal – os auditores da receita federal. O rei pálido, lançado esse ano pela Companhia das letras, é um romance póstumo e inacabado de Wallace, costurado a partir do abundante material que ele já havia preparado antes de seu suicídio, em 2008. Embora o livro não tenha sido finalizado os capítulos estão organizados de forma que podemos acompanhar em linhas gerais a história de novos ingressantes num grupo de burocratas do governo federal e suas tentativas de apreender aquela cultura enquanto aprendem o trabalho.

Wallace se aproveita dos diálogos, dos treinamentos intermináveis, dos desencontros e até de suas falsas memórias – já que se coloca como um personagem contando sua própria (fictícia) experiência como funcionário da receita – para apresentar ao leitor os poderosos insights que costuma trazer em seus ensaios. O pagamento de impostos, por si só, é tema de um debate acalorado entre os personagens: o quanto somos indivíduos independentes e quanta responsabilidade temos pela coletividade. No embate entre visões opostas de burocratas antigos e jovens, os primeiros interessados nos princípios da coisa toda e os últimos mais preocupados com resultados e arrecadação, surge uma discussão profunda sobre esse dilema individual x coletivo.

A contradição de vivermos exaltando a abundância de informações ao mesmo tempo em que nos afogamos num mar de dados aparece em diferentes contextos na história. Na última cena do livro um funcionário se desdobra para tentar gravar em fitas de vídeo toda a programação apresentada nos canais de TV durante um dia inteiro, indignado com a multiplicidade de opções: “Não é escolha se te afoga num monte de escolhas para você não ter como escolher de verdade porque tem opções demais para escolher”, desespera-se. E mesmo para os auditores, mais dados não significa mais informação, como diz uma funcionária durante o treinamento dos novatos: “Abandonem a ideia leiga de que informação é uma coisa boa. De que quanto mais informação melhor. A lista telefônica tem montes de informação, mas, se você está procurando um número de telefone, 99,9% daquela informação só atrapalha”.

O grande sucesso na vida moderna residiria na capacidade de não se deixar abater pelo tédio – esse o verdadeiro superpoder dos burocratas da receita. “A chave é a habilidade, seja ela inata ou condicionada, de encontrar o outro lado do rotineiro, do reles, do irrelevante, do repetitivo, do inutilmente complexo. Ser, numa só palavra, inentediável. (…) Se você é imune ao tédio, não há literalmente nada que você não possa conquistar”.

Com sua prosa magistral Wallace prende o leitor numa narrativa frenética e envolvente em que os embates contínuos entre opostos como tédio e sobrecarga, individualidade e coletividade, memória e ficção, reconhecimento e anonimato, são apenas portas de entrada para reflexões profundas sobre nossa natureza e nossa cultura.

 

Fonte: O Estado de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

Menu de Topo