Médicos e advogados usam “doutor” para ganhar respeitabilidade nas eleições

Mais de 2 mil candidatos das eleições 2014 são médicos e advogados. E vale tudo para ganhar respeitabilidade do eleitor. Entre eles, cerca de 600 concorrentes a cargos públicos adotam o título de “doutores” como parte do próprio nome e até levam o uniforme de trabalho aos preciosos segundos do horário eleitoral. A estratégia domina a categoria dos médicos que – com 608 representantes no pleito – tem 62% (379) deles levando o termo “doutor(a)” às urnas.

Os candidatos ouvidos pelo iG defendem o uso do título como uma forma de ajudar o eleitor a lembrar e entender os principais pontos de suas candidaturas, como saúde pública ou revisão do código penal, por exemplo. No entanto, especialistas em marketing político acreditam que seu uso pode trazer à memória um Brasil marcado pela divisão de classes e que deve ser esquecido.

“O tempo ali é curto. Assim como o vendedor de melancia pode aparecer carregando a fruta, o médico vai aparecer com o jaleco e estetoscópio. É natural”, minimiza o candidato a deputado estadual Raul Torelly Fraga (PMDB/RS), o “Dr. Raul”, de 58, especializado em clínica médica e medicina do trabalho. Ele já exerceu dois mandatos como vereador, entre os anos 2005 e 2012, mas rejeita a ideia de ir às ruas de Porto Alegre (RS) vestido com jaleco para pedir voto. “Nunca pensei em fazer isso, acho ridículo. Jaleco é para ser usado em ambiente hospitalar”, renega categoricamente.

Questionado sobre ter usado o tradicional uniforme e estetoscópio em sua gravação do horário eleitoral, o político diz “ser outra história”. Para ele, que já tentou ser eleito sem o “Dr.” antes do nome, cultivar a imagem de médico em santinhos e material de campanha é fundamental para que seja lembrado por antigos pacientes carentes da região da Grande Porto Alegre (RS), alvos de ações da Secretaria Estadual da Saúde. Fraga garante que o uso do apelido Dr. Raul é fruto do respeito do povo pelo seu trabalho e um divisor de classes.

“Sou conhecido como o ‘doutor Raul’. Isso com o tempo ficou carimbado. Na intimidade ou no lazer ninguém me chama assim. No futebol, por exemplo, amigos me chamam de Raul, mas os funcionários do clube me chamam de doutor. E não é porque são inferiores, é costume mesmo”, justifica Fraga, sem esconder que o uso do termo não é comum entre as pessoas mais próximas, no entanto.

O médico da família

Vespasiano Saulo da Costa e Silva, de 54, carrega o nome de urna “Dr. Saulo – Médico da Família” há quatro eleições. Hoje pelo PSB, o candidato busca vaga de deputado estadual para representar a periferia da zona sul de São Paulo, onde atuou como ginecologista e obstetra por 12 anos. Segundo ele, uma operação no dia 13 de abril de 2000 teria representado um chamado à militância. “Tentava salvar um paciente que havia levado 50 facadas e cinco tiros no PS do M’BoiMirim [zona sul da capital paulista]. Após cinco horas de cirurgia, bandidos invadiram a sala e executaram meu paciente com mais 18 tiros. Desde esse dia, decidi partir para a cidadania ativa”, diz ele ao iG.

Contrário às regras do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que proíbe o uso, por profissionais da área da saúde, de equipamentos de proteção individual fora do ambiente de trabalho, Silva percorre ruas de São Paulo com o simbólico jaleco branco para promover a humanização do atendimento médico. “Não uso como marketing, uso as ferramentas da minha profissão por respeito as mortes que vi na periferia”. Com apenas sete segundos no horário eleitoral gratuito, o candidato devidamente caracterizado defende o fim da corrupção como o verdadeiro remédio para a saúde pública.

Apesar de usar os elementos da profissão para angariar votos na cidade, o ginecologista reconhece que o título que carrega não o torna um médico melhor e ainda defende uma sociedade mais homogênea. “Isso é resquício do Brasil Colônia. As escolas de medicina endeusam os médicos, como uma casta privilegiada, em vez de ensinarem a humanização do atendimento. No final do dia, continuamos uma Casa-Grande & Senzala”, reconhece Silva, citando a obra de Gilberto Freire, que aborda a formação da sociedade brasileira.

Para especialistas em marketing político o termo doutor não surgiu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas expressa um período da história de clara divisão de classes. Aos advogados, o título de doutor foi assegurado aos bacharéis após decreto de Dom Pedro I, em 1827, ao criar cursos de Ciência Jurídicas e Sociais. Por quase dois séculos, o tratamento aos doutores se consolidou um costume, principalmente aos médicos.

Katia Saisi, professora do curso de especialização em marketing político da USP e diretora-executiva da agência Pluricom, abomina o seu uso e diz que ele revela um Brasíl que deveria ser superado. Ela esclarece que o título de doutor deveria apenas ser direcionado ao que defende uma tese de doutorado em qualquer área. “É um vício de linguagem nada inocente. Cria um distanciamento e deixa implícito uma visão de uma sociedade dividida por classes, uma visão aristocrática. Ser doutor não é cargo é título acadêmico”, defende.

A professora acredita ainda que o momento eleitoral é muito oportuno para discutir essa estratégia de “superioridade e distorção”, pois perpetuam os valores do distanciamento entre as classes. “Usar isso no horário político é claramente estratégico. Cria uma ideia de superioridade em relação à população e gerar uma credibilidade de que o candidato seria mais preparado uma vez que é ‘doutor’, referendado pelo nome e linguagem visual”.

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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