Estrada de ferro Bahia and São Francisco – José Jorge Andrade Damasceno

Hoje, com a permissão daqueles que apreciam os arrazoados publicados neste espaço, abrir-se-á uma pausa na escrita sobre o rádio a fim de reapresentar mais um texto escrito nos primeiros tempos de existência do Alagoinhas Hoje. Boa leitura e/ou (re)leitura.

Corria o século XIX, pleno de novidades em todas as áreas. No campo político, o século teve seu início marcado pelos auspícios da emancipação da colônia francesa no Caribe, depois foram os tempos da emancipação das colônias espanholas e portuguesa. Esta última, após enfrentar algumas intempéries políticas e sociais, como ações políticas e militares, no sentido de consolidação do processo independentista, movimentos separatistas, rebeliões escravas, como a dos “Malês” e “revoluções” como a comandada por Sabino Silva, na Bahia, e a “Praieira”, em Pernambuco, entre outras, o Império acabara por se fortalecer enquanto forma de governo, após rearranjos das suas forças de sustentação.

No campo econômico, o XIX assistia a consolidação da “Revolução Industrial” iniciada em torno das quatro últimas décadas do século anterior, ao mesmo tempo em que via desencadear-se a assim chamada “segunda revolução industrial”, marcadamente representada pelo advento e desenvolvimento do transporte ferroviário, que seria a marca dos grandes surtos de desenvolvimento e aceleração das velocidades e quantidades dos deslocamentos de pessoas e mercadorias, bem como, propiciando o acrescimento substancial dos volumes de acumulação de capital e, sobretudo, da expansão do capitalismo, para além das fronteiras europeias e norte-americanas.

No Brasil, só após ver controlados os últimos focos de resistência separatista, a antecipação da “maioridade” do herdeiro do trono e, principalmente, a proibição efetiva do tráfico negreiro, com a liberação dos capitais para investimentos, o capitalismo, enquanto modo de produção hegemônico, pôde dar início ao processo de expansão das forças produtivas e expropriação dos meios de produção, sem as amarras que dificultavam as transformações das características agrário-escravistas da economia nacional.

Portanto, grosso modo, pode-se dizer que é a partir da década de 1850 que o Brasil começa a ingressar no mundo capitalista moderno, no sentido mais amplo da palavra. É por aquela época que surgem os primeiros bancos, as primeiras experiências de industrialização, as primeiras linhas telegráficas e, entre outros empreendimentos, aquele que aqui mais de perto interessa considerar: os primeiros investimentos em abertura, construção e operação de estradas de ferro.

Desde o agigantamento da ocupação portuguesa, promovido pelas tão decantadas e/ou detratadas “Entradas e Bandeiras”, cedo se compreendeu a necessidade de integração das hiperbólicas distâncias entre as províncias, as povoações e as áreas produtivas, aos portos e aos centros de poder do Império. Até então, tal integração fôra feita pelas tropas de burro, pelos rios navegáveis e pelo mar, evidentemente propiciando o avultamento de grandes e quase insolúveis gargalos, no que diz respeito ao abastecimento de gêneros de primeira necessidade, bem como do escoamento dos produtos agrícolas e manufaturados, até os locais de distribuição e comercialização.

Assim, a abertura de estradas de ferro, em diversas áreas do Império, se apresenta como uma forma encontrada para resolver, a um só tempo, dois problemas cruciais: o da integração interprovincial e nacional, bem como o da distribuição de produtos. Na esteira de tal solução, surge, inapelavelmente, a propiciação da circulação das mercadorias, das riquezas, das pessoas e das idéias. Junto com elas, a cultura, a notícia, a moda, que permitiria a diversas populações, nos mais distantes e diferentes lugares, se apropriarem e promoverem mudanças nos hábitos, nos usos e costumes e, sobretudo, nas formas de compreender o mundo, então restrita aos ditames das tradições e das prédicas, deliberadamente filtradas por lideranças políticas, culturais e religiosas, regionais e locais.

É precisamente naquele contexto de desenvolvimentismo e modernização propiciado pela liberação dos capitais até então presos no processo de financiamento do tráfico de escravos, que faz-se sentir a necessidade de escoamento da produção agrícola e pecuária, das diversas regiões da Província, até o porto da sua capital.

Segundo a Mestre Etelvina Rebouças Fernandes “A idéia de uma estrada de ferro que saísse da capital da então Província da Bahia e alcançasse a margem direita do rio São Francisco, com ponto final na cidade de Juazeiro, era defendida por políticos influentes que tinham interesses políticos e comerciais na região, e pelo povo esclarecido, para o qual alcançar o rio era uma questão de importância nacional”.

Na obra intitulada “Do Mar da Bahia ao Rio do Sertão Bahia and San Francisco Railway”, a autora que por anos foi responsável por atividades relacionadas à restauração do Patrimônio histórico baiano, pessoa ligada ao Instituto  do Patrimônio Histórico Nacional(IPHAN), assegura que “a proposta para a construção de uma ferrovia baiana para atingir o rio São Francisco tinha a importante função social de integrar os sertanejos com a capital, tirando-os do isolamento a que foram condenados por três séculos. Para as indústrias, principalmente inglesas, criava um novo mercado, facilitando a distribuição de suas manufaturas. Para os políticos, representava um instrumento de poder na região mais árida do Estado da Bahia, com uma população castigada pelas secas constantes que assolavam periodicamente o sertão e que foram, com freqüência, utilizadas em campanhas eleitorais. O trem levava para aquela região sofrida a esperança de vida, cumprindo um papel humanitário. Por isso, as ferrovias, mesmo com intenções político-partidárias, eram tão importantes para o povo do sertão”.

Após a “Junta da Lavoura” não lograr êxito no intento de empreender a primeira ligação ferroviária baiana, é lançado em Londres, um consórcio de capitais ingleses, com o objetivo de fundar a “Bahia and São Francisco Railway Company”, que abriria e construiria a estrada de ferro, que ligaria a capital da província baiana, até a margem direita do Rio São Francisco, na divisa com a província de Pernambuco.

Devido a uma série de fatores, que aqui não cabe discutir, dado aos limites deste arrazoado, a companhia de capital inglês acabou sendo substituída pelo governo provincial, a fim de que pudesse tornar-se realidade, a idéia inicial de tamanha magnitude para a época: uma ferrovia que colocasse o sertão em contato com o litoral da capital provincial, o que seria de grande valia para a população em geral, na medida em que poderia se deslocar com mais rapidez e conforto, entre as estações intermediárias e a da Calçada, ganhando acesso a tudo aquilo que a “Bahia” lhe pudesse oferecer e, os produtores em particular, na medida em que viabilizaria a circulação da produção com mais rapidez e menor custo, aumentando o acesso aos pontos de comercialização.

Segundo pesquisas que vêm se desenvolvendo em programas de pós-graduação nas universidades estaduais e federais, sobretudo no campo da história, o traçado idealizado pelo consórcio inglês para a estrada de ferro na Bahia, não incluía a cidade de Alagoinhas, entre os locais que comporiam a rota ferroviária. Ela acaba por ser incluída no traçado construído a partir de 1858, conforme constatou a Professora-Mestre Keite Lima, em texto inédito, já mencionado neste espaço

Segundo ela, “ (…), o povoado, graças a sua localização geográfica, era considerado além de pórtico do nordeste baiano, uma área estratégica que encurtava as distâncias entre a província da Bahia e o porto fluvial de Juazeiro”.

A professora segue dizendo que “(…) somam-se a isso a perspectiva do tabaco produzido em Inhambupe, ser transportado para Alagoinhas pela ferrovia”, (…), “fato que ampliaria o rendimento da via férrea”. E Keite conclui afirmando que “esses fatores aliados a riqueza econômica que se baseava no gado, tabaco e açúcar, possibilitaram a Alagoinhas fazer parte da Era ferroviária do século XIX”.

O primeiro e único trecho da ferrovia efetivamente executado pela companhia inglesa, de 123 Km, foi aquele compreendido entre a estação da Calçada em Salvador e a estação de Alagoinhas, na vila do mesmo nome. Visto que a empreitada consumiu todo o capital disponível pelo consórcio para o empreendimento, fez-se imperiosa a efetivação de algumas mudanças em seu “plano” original de construção.

Nesta perspectiva, a mais substancial das mudanças no processo de implantação da estrada de ferro Bahia & São Francisco, que partiria de Salvador com destino a Juazeiro, foi a realizada no seu traçado inicial, na altura da Vila de Alagoinhas. Por motivos ainda não explicados satisfatoriamente pelos estudiosos do tema, ao aproximar-se da vila, a ferrovia sofre um desvio considerável, tendo seu leito sido definitivamente implantado, um pouco abaixo do local por onde se acreditava passariam os trilhos pelos quais circulariam as alegrias das viagens experimentadas por gerações de alagoinhenses e, a expectativa da realização de avultados negócios, alimentadas e em muitos casos concretizadas, pelos comerciantes e produtores da região.

Ao que parece, a perspectiva da passagem de uma estrada de ferro no território alagoinhense, criou nas elites dirigentes locais, a motivação de que precisavam para sair do marasmo econômico que parecia estar mergulhada a vila. Recorre-se uma vez mais ao texto dissertativo da professora Keite, para dar suporte a assertiva ora explicitada. Diz a Mestre:

“A desestruturação vivida pela economia da vila gerou ansiedade e expectativa por parte do governo local para a chegada da linha férrea. Para fazendeiros, comerciantes e os conselheiros, a ferrovia possibilitaria maior rapidez e volume no transporte da produção e no recebimento de mercadorias além de funcionar como fator de atração para a região, graças à facilidade de acessos, trazendo trabalhadores livres e comerciantes. Enfim, a ferrovia criaria condições capazes de estruturar a economia local e viabilizaria o desenvolvimento urbano”.

A alteração do ponto no qual passariam os trilhos da ferrovia Bahia & São Francisco, modificou sensivelmente a estrutura urbanística e populacional de Alagoinhas, na medida em que a povoação que já ali se encontrava instalada, há alguns séculos, acabou por ser deslocada cerca de 3 km, produzindo uma completa reorientação espacial, ao se criar uma espécie de “nova Alagoinhas”.

A área até então tida como sede da Vila de Santo Antônio das Alagoinhas, situada entre a fonte dos Padres e a fazenda Ladeira, pouco mais ou menos, pouco a pouco viu a feira fugir da sua Praça para perto da via férrea e dos rios Catu e Aramari, sofrendo uma sangria de “almas” e “fogos”, o que acabou provocando o seu quase total despovoamento. Transformada no bairro de Alagoinhas Velha, a antiga povoação se tornou uma área de grandes chácaras e sítios, região “aprazibilíssima” e de excelentes ares, que mais tarde, acaba por se tornar o paraíso das famílias afortunadas da cidade.

O bairro de Alagoinhas Velha só volta a ter uma ocupação maciça a partir da década de 1980, quando chegam para as suas cercanias, a Estação Rodoviária Clériston Andrade, a BR101 e, mais recentemente, a fábrica de bebidas da Schincariol.

Dali em diante, inúmeros condomínios, conjuntos habitacionais, universidades, clube de campo, empreendimentos comerciais, cemitério, equipamentos administrativos, do executivo e do Judiciário, passam a fazer parte da antiga povoação alagoinhense, por muito tempo, lembrada apenas pelo “pau pintado” e por sua Igreja Inacabada, em ruínas.

 

José Jorge Andrade Damasceno é doutor em História Social e professor da UNEB

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

Menu de Topo